Muitos, mas muitos mesmo, consideram Alan Moore o maior escritor que já passou pelos quadrinhos. Chamá-lo de “gênio” não é elogio à toa: ele realmente trouxe ideias inovadoras aos quadrinhos e à cultura pop. Não só personagens – Rorschach, John Constantine, V – e histórias – clássicos de Superman e Batman, Monstro do Pântano, Promethea, A Liga Extraordinária – mas jeitos de contar histórias. E é impossível negar que suas obras influenciam cada quadrinista e criativo antenado do planeta.
Mas muitos, e muitos mesmo, só conhecem Alan Moore como um senhor barbudo e ranzinza que cospe veneno em quem adapta suas obras para o cinema e TV, ou que lhes dá continuações indesejadas nos quadrinhos. É o caso de Watchmen, provavelmente sua HQ (em colaboração com Dave Gibbons) mais famosa e que, no momento, é também um seriado da HBO bem recebido pela crítica e pelo público – mesmo que os fãs mais devotos do autor, e nem o próprio, cheguem perto.
Alan Moore completa 66 anos neste dia 18. Seu nome não aparece nos créditos de Watchmen porque ele mesmo pediu. Diz que se aposentou dos quadrinhos, embora não tenha parado de escrever outras coisas. Abaixo, para quem conhece ou não a obra do inglês barbudo, alguns motivos que fazem Alan Moore ser, sim, tudo isso.
O SATIRISTA
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Alan Moore diz que sua cabeça de adolescente se abriu quando ele leu “Superômi” (“Superduperman”), a famosa sátira de Superman pela revista Mad. Foi ali que ele entendeu que os super-heróis sisudos e poderosos também eram ridículos. Esta e outras influências levaram-no a desenvolver a veia cômica. Seus primeiros trabalhos foram tiras de humor para revistas e jornais (Maxwell, o Gato Mágico, que ele também desenhava) e misturas de sci-fi com comédia na famosa antologia britânica 2000 AD (nos contos Choques Futuristas, com vários colaboradores). Embora hoje não seja tão conhecido pela comédia, ele nunca deixou de escrever boas histórias de humor, como A Saga dos Bojeffries (com Steve Parkhouse) e Splash Brannigan (com Hilary Barta).
O DESCONSTRUTOR
DC/Reprodução
E se o Monstro do Pântano não for um homem que ganhou poderes de planta, mas uma planta que acha que virou homem? Se Miracleman é tão poderoso, por que ele não vira rei do mundo? Se super-heróis existissem no mundo real, nossa política, nossa cultura e nossa tecnologia não seriam bem diferentes? Como aquele bom humorista que consegue ver as coisas pelo outro lado, Moore desconstruiu estruturas que já eram clichê, principalmente no mundo dos super-heróis. Melhor exemplo (e um spoiler bem pequeno, juro): a cena de Watchmen em que o vilão conta todo seu plano para os heróis e os heróis juram que vão impedir… mas o plano já aconteceu. O detalhe desconstrói a cena clássica de vilão, com um toque de lógica que falta a uma enormidade de roteiros.
O ERUDITO
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Alan Moore leu muito mais do que você e que todos seus amigos juntos. A Liga Extraordinária (com Kevin O’Neill) é um desfile da sua erudição: toda a cultura popular de língua inglesa dos séculos 19, 20 e 21, incluindo literatura, cinema, TV e música, misturada em uma história sobre um bando de heróis clássicos que salvam o mundo de aliens, demônios e do maligno governo britânico. Nos seus quadrinhos, Moore encaixa referências que vão de Gilgamesh a Breaking Bad, de Bertolt Brecht a Prodigy, de Shakespeare a 30 Rock. Isso quando ele não começa a desfilar seu entendimento de política – como em Brought to Light (com Bill Sienkiewicz) – ou de ciência – como em Jack B. Quick (com Kevin Nowlan).
O PASTICHISTA
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Quando escreve, Alan Moore engana muito bem quando quer se passar por William Shakespeare, James Joyce, Thomas Pynchon, H.P. Lovecraft ou Stan Lee. Também convence quando se arrisca em gêneros consagrados: sua versão dos seriados de TV policiais, Top Ten (com Gene Ha), é uma homenagem a Nova York Contra o Crime e Homicide, mas com super-heróis. Supremo e 1963 (os dois com vários desenhistas) emulam os quadrinhos de meados do século passado. Esta é a arte do pastiche: imitar o estilo dos outros com precisão. Geralmente ele faz pastiches pensando em sátira, mas não só. Sua versatilidade como escritor inclui seu próprio estilo e invenção de outros. No primeiro capítulo do romance A Voz do Fogo, por exemplo, a narração é o processo mental de um garoto pré-histórico, em 4.000 a.C., antes da invenção da linguagem.
O METICULOSO
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Os roteiros datilografados de Alan Moore são lenda no mundo dos quadrinhos: ele descreve cada quadro em pormenores que podem levar o desenhista à loucura. A Piada Mortal (com Brian Bolland) tem roteiro de 128 folhas para descrever 46 páginas de HQ. Quando um personagem de Miracleman senta-se num banco de praça, Moore sugere todos as frases marcadas a canivete na madeira do banco. Sua meta é um controle fino e detalhista da narrativa, que quase sempre ganha um ritmo mooreano independente de quem for seu colaborador. Um e outro desenhista já reclamou de trabalhar com o escritor – como Oscar Zarate, em Um Pequeno Assassinato – mas a maioria topa e aprecia o desafio.
O ARQUITETO
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O gibi com o típico ritmo mooreano tem desenvolvimento lento e bastante texto, até que chega em um momento de impacto – e que impacto. No famoso capítulo de Do Inferno (com Eddie Campbell) em que William Gull dá uma aula ao cocheiro Netley sobre os significados místicos da arquitetura e urbanismo de Londres, o andar da carruagem é literalmente devagar, mas a conclusão é de revirar o estômago. O segundo capítulo de Neonomicon tem uma arrastada investigação policial, carregada nos diálogos, que se equilibra com um final com uma das cenas mais apavorantes que já se viu em HQ. A arquitetura se estende aos mundos: Watchmen (com Dave Gibbons) é recheada de easter eggs cuidadosamente posicionados para você saber como são os EUA desse mundo alternativo (coisa que o seriado de TV também faz).
O INSPIRADOR
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A passagem de Alan Moore pela revista Monstro do Pântano (com Steve Bissette, John Totleben e outros) tem ligação direta com a criação da linha adulta da DC Comics, a Vertigo. Moore ensinou a Neil Gaiman como escrever HQ. A Marvel passou a chamar sua realidade principal de Terra 616 depois das histórias de Moore em Capitão Britânia (com Alan Davis). Os hackers Anonymous e outros manifestantes mundo afora começaram a usar a máscara de Guy Fawkes por influência de V de Vingança , de Moore e David Lloyd. No início deste ano, a deputada norte-americana Alexandria Ocasio-Cortez rebateu críticas dos colegas de partido citando Rorschach: “Eu não estou preso com VOCÊS. Vocês é que estão presos COMIGO.” As obras de Moore perduram na imaginação do leitor.
O MAGO
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Colocar uma ideia no papel e fazer esta ideia criar raízes na cabeça de alguém é o que alguns chamam de comunicação. Outros chamam de arte. Alan Moore chama de magia. Aos 40 anos, ele declarou-se mago, começou a praticar rituais mágicos, a estudar a Cabala e venerar uma divindade da época do Império Romano: a serpente de peruca chamada Glycon. Seus estudos de magia o levaram a criar uma teoria mágica sobre o processo criativo, que ele explica em Promethea (com J.H. Williams III), e tiveram grande influência sobre trabalhos como Lost Girls (com Melinda Gebbie) e Providence (com Jacen Burrows). Você pode não chamar de magia, mas o poder que Moore tem de colocar ideias na sua cabeça é fato.
O RABUGENTO
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Desde uma briga com a DC Comics por causa dos direitos autorais de Watchmen, em fins dos anos 1980, Alan Moore é famoso por relações tempestuosas com quem o contrata ou mexe no seu trabalho. Ele não aprovou (nem assistiu) nenhum dos cinco filmes baseados diretamente em obras suas – Do Inferno, A Liga Extraordinária, V de Vingança, Watchmen, A Piada Mortal – e pediu que seu nome fosse tirado dos créditos. Desistiu de toda uma linha brilhante de HQs, a America’s Best Comics por desentendimento com a DC. Via imprensa, atacou todos os envolvidos no projeto Antes de Watchmen. Ele também não tem papas na língua para dizer que escreveu algum projeto só para pagar imposto atrasado (Neonomicon). Suas brigas com editoras e produtores de Hollywood viraram até piada quando ele participou de Os Simpsons. Moore é um gentleman britânico: sempre cortês e afável, mas não leva desaforo pra casa.
O APOSENTADO
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Alan Moore começou a fazer quadrinhos em 1978 e em 2019 declarou-se aposentado. Cinema Purgatorio e o último volume de A Liga Extroardinária (ambas com Kevin O’Neill) saíram em 2019. À BBC, ele disse recentemente que “por mais que [eu e O’Neill] adoremos HQ, não aguentamos nem mais um segundo nesse mercado imbecil”. Mas ele também diz que só se aposentou dos quadrinhos: tem planos de concluir uma ópera sobre o mago John Dee, talvez continue a escrever prosa (em 2016, ele lançou Jerusalem, livro de 1200 páginas que lhe tomou dez anos), vez por outra compõe músicas e planeja uma série de filmes com o amigo Mitch Jenkins. Ele continua morando na cidade onde nasceu, Northampton, casado com a quadrinista Melinda Gebbie, e lê livros infantis selecionados para os netos.
POR ONDE COMEÇAR
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Se você nunca leu nada de Alan Moore, invejo tudo que você vai descobrir. O melhor ponto de partida depende de gostos pessoais, mas A Saga do Monstro do Pântano (com Stephen Bissette, John Totleben e outros, 6 volumes, Panini) talvez seja o mais recomendável: Moore estava começando nos quadrinhos dos EUA e foi soltando as asinhas aos poucos. Você aproveita mais Watchmen (com Dave Gibbons, Edição Definitiva, Panini) se já tiver uns anos de vivência com outros gibis de herói – e aí vai captar tudo que é desconstruído na HQ. V de Vingança (com David Lloyd, edição única, Panini) é da mesma fase e da mesma meticulosidade de Watchmen, mas menos focada em heróis. As histórias que ele fez com Batman (A Piada Mortal, com Brian Bolland, Panini) e Superman (O que aconteceu com o homem de aço, com Curt Swan e Dave Gibbons, Panini) são clássicas.
A partir daí você já subiu de nível e devia encarar A Liga Extraordinária (com Kevin O’Neill, partindo da coleção 1898, Devir), Do Inferno (com Eddie Campbell, edição única, Veneta), Promethea (com J.H. Williams III, 2 volumes, Panini), Um Pequeno Assassinato (com Oscar Zarate, edição única, Pipoca & Nanquim) e A Balada de Halo Jones (com Ian Gibson, edição única, Mythos). Depois tem o material um pouco mais difícil de encontrar no Brasil no momento – ou seja, merecem reedição: Miracleman (com vários desenhistas), Tom Strong (com Chris Sprouse), Top Ten (com Gene Ha), Lost Girls (com Melinda Gebbie), Supremo (com vários desenhistas).
Ainda há duas biografias do barbudo publicadas no Brasil, Alan Moore, o Mago das Histórias (de Gary Spencer Millidge, Mythos) e O Mago das Palavras: a vida extraordinária de Alan Moore (de Lance Parkin, Marsupial), para você ficar bem enredado naquela barba. Boas descobertas.