No dia 30 de janeiro de 1869 começou a ser publicada aquela que é considerada por muitos autores como a primeira história em quadrinhos brasileira. Trata-se da história As aventuras de Nhô Quim ou Impressões de uma viagem à Corte, de autoria do italiano Angelo Agostini. Embora outras obras utilizando a linguagem quadrinhística tenham sido veiculadas no país antes dela, a história de Agostini é a primeira a concentrar vários dos elementos que caracterizam os quadrinhos: publicada em seqüência, com personagem fixo e com enquadramentos verdadeiramente cinematográficos. Assim, considerando a importância da data, a Associação dos Quadrinhistas e Cartunistas do Estado de São Paulo (AQC-ESP), a partir de 1984, decidiu instituir o dia 30 de janeiro como o Dia do Quadrinho Nacional, dedicado à valorização desse meio de manifestação artística no país e à consagração de seus mestres, bem como à divulgação do trabalho dos artistas dos quadrinhos, de todas as formas possíveis. Descubra abaixo quem foi Angelo Agostini e seu legado.
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Enigmas Sociaes De Angelo Agostini |
Futebol. Música. Carnaval. De muitas coisas gostamos os brasileiros de nos vangloriar. Em algumas delas, aliás, com motivos de sobra. E também em relação às histórias em quadrinhos, temos razões para contar alguma vantagem, embora estes talvez não sejam tão bem assimilados como em relação a outras coisas. No entanto, independente de todas as controvérsias, podemos dizer que, de uma certa forma, fomos nós que descobrimos os quadrinhos enquanto arte voltada para as massas, dedicando a eles a primeira Exposição Internacional das Histórias em Quadrinhos a expor originais dos autores mais prestigiados então. Realizada em São Paulo, foi organizada por alguns entusiastas dessa arte em nosso país. Era o ano de 1951, época em que as histórias em quadrinhos ainda eram consideradas coisa sem a mínima importância no resto do mundo. Os europeus só abririam os olhos para elas, como manifestação artística digna de atenção, mais de uma década depois dos brasileiros.
O reconhecimento da importância artística das histórias em quadrinhos não é talvez a única coisa da qual podemos fazer alarde. Seria até possível afirmar, um pouco poeticamente, que foi sob o signo do Cruzeiro do Sul e utilizando como veículo a última Flor do Lácio que surgiram as primeiras histórias em quadrinhos realmente dignas desse nome. E, descontando o ufanismo, talvez isto não esteja assim tão longe da verdade...
Yellow Kid - De Richard Felton Outcault |
Como se sabe, a Alemanha teve Wilhelm Busch, com seus personagens Max und Moritz. A Suíça destaca-se com Rudolph Töpfer e Monsieur Vieux-Bois. A França comparece ao panorama universal com Christophe e sua Famille Fenouillard. A Inglaterra, por sua vez, apresenta a revista Punch como o primeiro veículo de quadrinhos. Os norte-americanos, oligopolistas por vocação, disseminaram o mito de que é deles a criação dos quadrinhos, surgidos sob a camisola do Yellow Kid, de Richard Felton Outcault. Em comparação com todos esses países, alguns deles verdadeiros baluartes da indústria quadrinhística internacional, seria natural que o Brasil se sentisse inferiorizado. Mas tal não acontece, pois ele também o que mostrar. Na realidade, contemporâneo aos demais – ou até mesmo atuando alguns anos antes deles, se formos mais precisos –, já estava no Brasil o caricaturista Ângelo Agostini, publicando nos jornais do Segundo Reinado, em linguagem gráfica, as aventuras de suas diversas personagens.
Angelo Agostini e seu tempo
Meus irmãos, fazei o que eu digo, mas não façais o que eu faço |
De uma certa forma, o próprio nome já o denuncia: Ângelo Agostini não era originalmente brasileiro, embora tenha vivido aqui grande parte de sua vida e tenha finalmente se naturalizado em 1888. Na realidade, ele nasceu em Vercelli, na Itália, pouco antes da metade do século XIX e veio para o Brasil quando tinha dezesseis anos. Aqui viveu a maior parte da sua vida, até a sua morte, em 1910. No entanto, apesar de italiano de nascença, ele pode muito bem ser considerado como brasileiro, não apenas porque se naturalizou, mas, também, por ter aqui desenvolvido todas suas atividades artísticas de destaque (e também aquelas não tão artísticas, mas isto já é outra história...).
N’O Cabrião, apareceram seus primeiros trabalhos e ilustrações. Deve-se considerar que eles não tinham ainda os elementos característicos dos quadrinhos, como o balão ou a onomatopéia, algo que, aliás, também faltava ao trabalho tanto de europeus como de norte-americanos naquele período. No entanto, pode-se defender que os trabalhos de Agostini guardavam uma semelhança muito maior com os quadrinhos do que os dos autores acima citados. Era, então, o ano de 1864; as histórias em quadrinhos, tais como as conhecemos hoje, estavam longe de existir.
Durante sua atribulada vida, Agostini fez um pouco de tudo no que diz respeito à arte gráfica. Foi ilustrador freqüente de várias revistas, entre os quais se destacam a Vida Fluminense e O Mosquito. Fundou e foi, durante mais de dez anos, o diretor da Revista Ilustrada. No fim de sua carreira, colaborou com a empresa O Malho, responsável pela revista infantil O Tico-Tico, de cujo logotipo foi o idealizador. E foi também a mente criativa por traz de várias personagens fixas, publicadas durante anos em algumas dessas revistas, que estudiosos identificam como pioneiras entre as personagens fixas dos quadrinhos. Duas delas se destacam nesse rol.
Nhô Quim e Zé Caipora
Caricatura em Vida Fluminense |
Ângelo Agostini publicou sua primeira história com personagem fixa na Vida Fluminense, iniciando em janeiro de 1869. Intitulada As aventuras de Nhô Quim, ou impressões de uma viagem à corte, narra as experiências de um caipira perdido na cidade grande. A história é desenvolvida em uma série de situações hilariantes, na realidade constituindo muito mais variações em torno de um mesmo tema que um enredo contínuo com começo, meio e fim. Entre cada um dos episódios de sua série, o autor introduziu como que uma espécie de gancho, que deixava pressupor a continuidade no número seguinte do jornal. Essa modalidade narrativa funcionava muito bem como estratégia de marketing e como elemento de manutenção de uma clientela cativa de leitores, como já haviam descoberto os autores de folhetim alguns séculos antes e como descobririam os syndicates norte-americanos vários anos depois.
É fácil identificar que esse trabalho de Ângelo Agostini já encerra uma novidade para a época: uma proposta narrativa de maior fôlego que poderia até ser considerada, segundo o pesquisador Antonio Luis Cagnin, como a primeira novela-folhetim de que se tem notícia, ou, como se diz hoje em dia, a primeira graphic novel. Nessa série, Agostini destaca-se no uso de recursos metalingüísticos ou de enquadramentos inovadores para a época, como uma sucessão de vários quadrinhos utilizando um mesmo cenário de fundo, técnica que apenas muito tempo depois foi explorada pelas histórias em quadrinhos. A personagem foi publicada de 1869 a 1872, tendo sido também desenhada por Cândido de Aragonês Faria, que manteve o mesmo estilo do criador original.
Exemplo de sucessão de vários quadrinhos
utilizando um mesmo cenário de fundo
Página de Zé Caipora |
Sua segunda personagem fixa, Zé Caipora, praticamente mantém a mesma temática de Nhô Quim. Mudam-se apenas os traços do protagonista, mas permanecem a mesma temática e forma narrativa. As aventuras de Zé Caipora foram publicadas de maneira não muito regular, de 1883 até 1886, na Revista Ilustrada; foram depois retomadas, durante algum tempo, no Don Quixote, e finalmente encerraram suas peripécias no periódico O Malho. Posteriormente, foram publicadas em álbum independente, sendo as histórias redesenhadas por seu autor.
Segundo os críticos, Agostini atingiu, em As aventuras de Zé Caipora, um grau de qualidade do desenho muito superior ao que havia atingido em sua obra anterior, As aventuras de Nhô Quim, gerando uma produção artística que ainda hoje se destaca pelas explorações criativas em que seu autor se aventurou. Acima de tudo, Agostini representou um artista que jamais teve medo de ousar. Um exemplo ainda atual.
O resgate de um pioneiro
AS COBRANÇAS (1867) - Meu senhor não está em casa. Volte amanhã. |
Embora Ângelo Agostini não tenha utilizado alguns dos recursos comuns às histórias em quadrinhos de hoje em dia, como o balão e a onomatopéia, desconhecidos em sua época, ele deve, com toda justiça, ter lugar assegurado entre os pioneiros da arte dos quadrinhos. Nada fica a dever, em termos de qualidade, a qualquer artista gráfico de sua época. Em alguns casos, até, chega mesmo a suplantá-los com grande vantagem.
Recuperar a obra artística de Ângelo Agostini é tarefa que apenas aos poucos e arduamente vem sendo realizada no país, principalmente devido ao péssimo costume de se exaltar demasiadamente os valores alienígenas e fechar os olhos às belezas que internamente se possui. Algumas exposições já foram organizadas no país, mostrando seu trabalho, visando mostrar às novas gerações os meandros de uma produção artística inigualável em sua época.
Caricatura |
Publicações que recuperam o trabalho desse artista, indiretamente – como acontece em As barbas do imperador, de Lília Moritz Schwarcs –, ou de maneira facsimilar – como realizou a UNESP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo com a publicação de coletânea contendo tudo o que foi publicado n’O Cabrião -, são iniciativas oportunas e necessárias. Também meritória é a comemoração, a cada 30 de janeiro, do Dia do Quadrinho Nacional, tradição instituída pela Associação de Quadrinhistas e Cartunistas do Estado de São Paulo (AQC-ESP), desta forma celebrando o aniversário do início da publicação de As aventuras de Nhô Quim.
Todas essas atividades são importantes e devem ser sempre incentivadas por todos aqueles que acreditam na importância do trabalho de Ângelo Agostini para a constituição de uma memória gráfico-visual neste país. No entanto, deve-se também reconhecer que elas estão aquém do que o autor, um piemontês que teve a audácia de produzir histórias em quadrinhos antes mesmos que elas se entendessem como tal, certamente merece. Nesse sentido, muito ainda há a ser feito.