É uma tradição o Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte homenagear um quadrinista a cada edição do evento. Na lista, estão nomes como Mauricio de Sousa, Renato Canini, Antônio Cedraz, Laerte e Érica Awano. Neste ano, o quadrinista, ilustrador e professor Marcelo D’Salete é o grande homenageado. São mais de 20 anos de carreira, um prêmio Eisner e diversas outras premiações, dezenas de publicações em outros países: D’Salete é um dos principais quadrinistas de sua geração.
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Autor de Noite Luz, Encruzilhada, Cumbe e Angola Janga, os três últimos em catálogo pela editora Veneta, Marcelo D’Salete relembrou sua relação com o FIQ, em um texto publicado nas redes sociais. O quadrinista conta que visitou o festival na capital mineira, quando ainda era um iniciante, em meados dos anos 2000, “conhecendo o mundo das artes gráficas nacionais, os quadrinhos, as feiras, publicações, editoras e artistas”. Agora, após o isolamento que cessou os eventos, o quadrinista paulistano retorna ao FIQ, que celebra sua carreira com a exposição “Malungo D’Salete: Entre faróis, favelas e quilombos”, além de uma mesa, ao lado dos quadrinistas Ana Luiza Koehler e Jefferson Costa, do também professor, Luciano Jorge, e mediação de Lucas Ed, curador do festival.
“É um prazer muito grande voltar aqui ao FIQ. É um evento que abrange boa parte dos artistas Brasil afora e que tem uma relação com o público muito bonita. Além disso, é um evento que proporciona uma troca entre os profissionais muito rica”, conta o homenageado, relembrando ainda a importância do festival para sua própria carreira. “Eu diria que eu aprendi muito sobre como fazer quadrinhos a partir do FIQ também”, diz.
Carreira que é marcada pela intensa dedicação a um projeto que, como ele mesmo diz, acabou se tornando um projeto de vida. A produção das obras que vieram a ser Cumbe e Angola Janga, levou mais de dez anos, entre pesquisa, elaboração dos roteiros, desenhos, tinta, letreiramento e ajustes finais. D’Salete comenta que, após o lançamento de seus dois primeiros livros, Noite Luz e Encruzilhada, obras mais urbanas e com temas próximos ao autor, ele passou a encarar os quadrinhos como uma possibilidade de compreender determinados contextos e momentos históricos que gostaria de conhecer mais. “Fazer Angola Janga, e daí surgiu também o Cumbe, foi um mergulho, onde você se transforma como autor, muda sua própria maneira de ver a vida e aprende muito. Por isso falo que é algo além da ideia de ofício, inclusive no retorno que se espera disso”, analisa.
Ao abordar a luta dos negros no Brasil colonial contra a escravidão, a partir da perspectiva dos próprios escravizados, Cumbe e Angola Janga são uma maneira de enxergar a história do Brasil, a partir de um olhar não branco. “Acredito que as pessoas podem sim se colocar no lugar do outro, podem falar sobre outra realidade, mas não podemos nos esquecer que, na nossa história, quem geralmente falava sobre essa situação da população negra eram outras pessoas: brancas, geralmente homens”. Isso, como aponta D’Salete, eclipsava a experiência, a produção, dos autores negros. “É como se você não tivesse direito de falar sobre sua própria experiência, é sempre o outro falando disso”, diz o quadrinista.
O primeiro homenageado negro do FIQ
Mais de 20 anos após sua primeira edição, o FIQ tem, somente agora, seu primeiro homenageado negro. Marcelo D’Salete considera importante ressaltar que, antes dele, muitos outros autores e autoras negros foram relevantes para a produção nacional de quadrinhos. “Existe uma autoria negra nos quadrinhos de várias décadas. Podemos falar de Mauricio Pestana, que editava, desde a época do Pasquim, quadrinhos falando da questão negra no Brasil e de uma forma politicamente muito próxima dos movimentos negros, algo de denúncia. Podemos falar de quadrinistas que muitas vezes não sabemos que eram autores negros”.
É o caso de Maria Aparecida Godoy, roteirista de histórias em quadrinhos de terror. Uma mulher negra criando HQs no auge das revistas do gênero, no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970. “Muitas vezes a gente não sabe dessas autorias porque só vemos a página final do quadrinho, e nem sempre os autores. Então, acho que é um momento interessante para resgatarmos essa autoria negra nos quadrinhos, porque existe essa presença ali”, observa D’Salete.
Na cena atual, a visibilidade de autores negros e também de mulheres, índigenas e pessoas LGBTQIAP+ tem sido ampliada, mesmo que ainda haja um caminho a percorrer. Durante a mesa em sua homenagem, na programação de sábado do FIQ, Marcelo D’Salete disse que considera isso essencial, não somente para os próprios autores, mas para o Brasil ser entendido como um país um pouco mais democrático. “O fato de ter mais artistas de diferentes origens produzindo obras é o que pode ser uma faísca para nos tornarmos uma sociedade um pouco melhor”, reflete.
Próximos passos
Encruzilhada, Cumbe e Angola Janga estavam por toda parte do FIQ, no sábado, enquanto visitantes carregavam seus exemplares para serem autografados pelo homenageado do festival. Novos quadrinhos chegarão ao público, porque a lista de obras de D’Salete, em breve, irá aumentar.
Em entrevista ao Fora do Plástico, durante o evento, ele conta que tem pelo menos três roteiros de quadrinhos para desenvolver. Além disso, está finalizando um quadrinho, de cerca de 150 páginas, ambientado em São Paulo, em meados do século XIX. Uma HQ centrada em personagens negros, escravizados e livres, e todo o contexto de vida dessa população, no período e local ambientados. “É uma história que estou gostando muito de fazer, que surgiu a partir de documentos, de alguns personagens que existiram, e o desafio foi criar toda a ficção a partir disso”, conta. A expectativa é que o lançamento seja ainda este ano.
Enquanto a nova obra de D’Salete não chega, resta aos leitores se deliciar com a qualidade do trabalho do quadrinista paulistano, que não somente merece essa homenagem do FIQ, mas todo o reconhecimento por uma produção que fez diversos leitores de quadrinhos revisitarem, com um olhar distinto, a história do Brasil.
Você pode ficar por dentro do FIQ, durante os cinco dias de evento, com a cobertura do Fora do Plástico e do Omelete.