Não se costuma pegar uma HQ de Moebius para “ler”. Pelo menos não no sentido clássico, o de seguir as letrinhas. Você lê imagens. Tenta penetrar na cabeça do homem que imaginou aquelas paisagens alienígenas, animais e objetos que não fazem parte de nenhuma referência, capacetes fálicos e outras roupas que não pertencem a época nenhuma, a lugar nenhum. E em um desenho tão rebuscado, tão detalhista nas luzes e sombras, nas cores, nas formas, que é difícil acreditar que o autor não tenha visto estas coisas de frente.
Arzach – ou Arzak, Harzak, Harzakc, Harzach, Arrzak... a confusão na grafia é proposital – é possivelmente a expressão máxima destes quadrinhos "moebianos" que você só pode ler dessa maneira. Uma das histórias até tem texto. Mas o personagem-título, assim como o pteroide que usa como meio de transporte, não emite um único som.
(Consta que no último álbum do personagem, lançado em 2010 na França, Arzak fala. Mas, enfim, estas 35 páginas que lançaram-no mostram um personagem mudo).
Depende da nossa imaginação, também, entender por que o técnico com óculos de aviador que dirige o calhambeque é tratado com violência pelos humanoides verdes da edificação no meio do deserto onde chega para consertar uma máquina que, aparentemente, restitui as aventuras de Arzak. A única lógica, se é que se pode exigir lógica, é que Moebius estava a fim de desenhar desertos, edificações alienígenas, humanoides verdes, óculos de aviador, máquinas e calhambeques. E talvez seja justamente isso: como lembra o prefácio da obra, o autor criava suas histórias sem roteiro, fazendo um quadro depois do outro sem saber ao certo que caminho tinha que seguir ou em que ponto queria chegar.
É contrastante e até divertido que esta coleção abra com “O Desvio”, história curta que não tem nada a ver com Arzak fora ser o momento preciso em que Moebius deixou de ser somente um desenhista de HQs de faroeste para começar uma carreira autoral voltada para a fantasia e a ficção científica (embora nunca tenha deixado a outra carreira - quando assina como "Jean Giraud" - de lado). “O Desvio” tem tanto texto, em balões gigantes, que vira uma espécie de brincadeira com a narrativa tradicional da HQ.
Sendo histórias da década de 70, talvez as paisagens aliens que tanto marcaram os leitores da época não impressionem leitores de hoje. O estilo Moebius, afinal, virou referência para tantos quadrinistas, ilustradores, cineastas que já virou “fundo” destes mundos de fantasia. Tem Moebius em Alien, Tron, O Segredo do Abismo, O Quinto Elemento... para ficar só nos filmes em que ele efetivamente é creditado (e há famosos pelos quais ele não é, como os visuais do planeta Coruscant de Star Wars).
Mas mesmo há trinta, quarenta anos, ele fazia coisas que até agora não foram bem absorvidas por aqueles que influenciou. E se você ler com atenção estas 56 páginas do álbum – que, nesta forma de leitura, rendem um longo processo com o álbum -, você pode entrar em sintonia com uma das imaginações visuais mais férteis do mundo.
Vale comentar que a edição brasileira, da Editora Nemo, respeita o tamanho original das páginas originais (32 x 24 cm), além da capa dura e do papel de qualidade. E por algum milagre conseguiu combinar isso a um preço não-proibitivo (R$ 42,00) – o grande impedimento para publicação destes clássicos álbuns franceses no Brasil. Que os outros álbuns da coleção Moebius sigam este modelo.