HQ/Livros

Artigo

Diário do Festival Internacional de Banda Desenhada de Amadora - Parte 1

Diário do Festival Internacional de Banda Desenhada de Amadora - Parte 1

25.10.2006, às 00H00.
Atualizada em 05.12.2016, ÀS 13H02

O decálogo I

Saudade

Witch

Sky Doll

Super Pig

O decálogo X

Fleury-Nadal

Com mais investimentos e uma nova sede, começou no último dia 20 de outubro a 17ª edição do Festival Internacional de Banda Desenhada de Amadora (FIBDA). Até 5 de novembro, fãs da Banda Desenhada, como são conhecidas as nossas Histórias em Quadrinhos por lá, vão se encontrar no Fórum Luís de Camões. O tema deste ano é "17 graus periféricos e o resto do mundo" e destaca a nona arte produzida na África, países árabes, Leste Europeu e América Latina. A participação brasileira, porém, foi diminuída por conta das altas nos preços das passagens depois dos problemas enfrentados pela Varig e Air Luxor. O Cozinheiro Pedro "Hunter" Bouça foi até lá conferir de perto este primeiro fim de semana e agora conta tudo o que viu para você!

DIA 1

OK, a nova sede do Festival de Amadora fica no Fim do Mundo (pior, no Fim do Mundo ladeira acima!) e o lugar é uma estufa, tal qual a sede anterior (que, ao menos, ficava no metrô). E aquilo estava tão bagunçado que eu cheguei duas horas antes do Festival começar e a maior parte das exposições ainda não estava montada.

Mas QUE SE DANE! Eu adoro isso! O Festival é ducaramba!!!

Com a bagunça que estava, só consegui ver uma exposição, a dedicada ao Decálogo. E QUE exposição! Nas paredes, páginas originais de TODOS os 10 álbuns da série (em média duas-três por álbum!). No meio, modelos em escala de locais que aparecem em cada um dos álbuns, montados em altares (minha aposta é que vão roubar todos os álbuns antes do final do Festival...). MUITO LEGAL!

No show de abertura não rolou o "Sandman no Inferno by Ed Wood do ano passado (não me peçam para explicar porque dá trabalho), mas eventualmente botaram pra tocar uma banda argentina (!) que tinha mais decibéis do que talento, o que me botou pra fora de lá 15 minutos depois, com os tímpanos dando sinal de telefone ocupado.

No processo, porém, eu comprei o álbum Saudade, do Wolverine no Brasil, feito pela dupla franco-belga Morvan e Buchet. Só posso dizer que é a mais divertida história do baixinho canadense que eu leio em muito tempo! E, sem dúvida nenhuma, a mais violenta. E como é bem desenhada! Vocês já imaginaram o que acontece quando o Wolverine corta um braço de um cara fora? Sai a mão para um lado e duas rodelinhas de braço pro outro. Tudo isso é mostrado em glorioso detalhamento de quadrinho europeu! Deve ser a resposta deles à hipócrita regra não pode sexo ou nudez, mas qualquer tipo de violência serve da censura americana. E vocês nem imaginam o que a marginália brasileira faz com o Wolvie! Dente-de-Sabre e Lady Letal não chegam nem perto...

E o inimigo do Wolverine na história é basicamente o Dr. Fritz. Nuff said!

Momento mais curioso: Estava eu comprando o novo álbum da edição portuguesa do Príncipe Valente (a melhor do mundo, sem exagero!), quando um sujeito que me viu remexer nos álbuns que eu tinha comprado me abordou falando francês. Era Frank Giroud, o escritor do Decálogo e convidado especial do Festival! É por conta DESSE tipo de coisas legais que eu adoro esses eventos!

Amanhã vão estar lá o Giroud, o Denis (que fez o livro de Belém da coleção de Cidades Ilustradas) e a dupla Alessandro Barbucci e Barbara Canepa (criadores de WITCH e Sky Doll!). Vou caçar autógrafos e dedicatórias! Desejem-me sorte!

Hunter (Pedro Bouça)

*****

DIA 2

Hoje foi o dia dos autógrafos, vamos lá.

No começo, foi vez do material nacional: Os três envolvidos na nova HQ da Kingpin of comics, Super Pig, o escritor/arte-finalista/editor, o desenhista e o designer. O designer fez para mim uma página bem curiosa, entupida de detalhes (quase não tinha espaço em branco!), fiquei imaginando como será se ele tiver de fazer isso para mais 20 pessoas. O desenhista fez um desenho legal do porco-protagonista, que depois passou ao arte-finalista pra fazer o nanquim (e ouvir a inevitável piada do tracer - obrigado Kevin Smith!). O resultado final ficou bem legal.

A seguir, entrei na (considerável!) fila para um desenho do Alessandro Barbucci (a Barbara Canepa não veio, no fim das contas). Não me decepcionei, ele fez um espetacular desenho de Noa, protagonista de Sky Doll, em meu álbum! Só lamentei não ter um álbum de Monster Allergy, porque os desenhos dos personagens da série que ele fazia eram uma coisa de louco! LINDÍSSIMOS! O cara é demais! Super-simpático também, respondeu às minhas perguntas (em um francês prejudicado por meu pouco sono desta noite) e às do público na palestra com o máximo de solicitude. Descobri umas coisas legais nisso, tipo que ele e a Barbara passaram quatro anos para convencer a Disney a publicar WITCH e que, ainda assim, o pessoal de lá só topou publicar um número porque não confiava que a série pudesse vender (esse número vendeu 120 MIL exemplares! Sem publicidade nem nada). Pior, a dupla fez a série sem sequer assinar um contrato, com a garantia verbal (jovens tolos...) de que receberiam direitos autorais (hah!). Atualmente eles estão processando a Disney, é claro.

A seguir, fui atrás de um autógrafo do Frank Giroud, que eu já tinha conhecido na véspera.  E não é que além de ser um dos melhores escritores da França o homem também desenha? Ele me desenhou no álbum (ou, pelo menos, fez como eu seria se parecesse um herói de quadrinhos, ao invés de parecer o coadjuvante mané que morre na página 3) com um talento insuspeito para quem nunca ilustra HQs. Ah, ele também fala um português macarrônico. Nota 10 pro cara! A conferência com ele é amanhã, então eu vou aproveitar pra fazer minhas perguntas lá.

Na seção de compras, encontrei o pessoal da Loja Tintin, de quem eu encomendara um livro na véspera. O livro em questão chegou hoje e fala sobre a criação da revista Tintin belga, principal revista em quadrinhos do país nos anos 50 (e uma das mais importantes da França também) e da participação de Hergé na sua criação. Parece bastante interessante, mas só terei tempo de ler lá por 2015. Um curioso brinde: Um fac-símile do primeiro número da revista, para vermos como era a aparência da revista publicada no distante ano de 1946!

Em termos de compras, fiquei nisso e em um punhado de álbuns do Laerte que eu ainda peguei no estande da Devir (Sim, é a mesma Devir! E é o mesmo Laerte... eu não resisto!). Amanhã rola mais.

Só consegui dar uma olhada rápida na exposição latino-americana. Tal como eu imaginava, as HQs argentinas lavam o chão com todo o resto junto! Usando uma frase de Cavaleiros do Zodíaco, a diferença entre nós é a mesma entre um velho e um Deus!. Pois bem, era a mesma entre o quadrinho argentino e o resto do continente. Ao menos nessa primeira impressão.

Também aproveitei e perguntei à representante das Edições Asa se eles publicariam mais Mortadelo e Salaminho (em Portugal Mortadela e Salamão). Ela me disse que está nos planos. Também perguntei se não seria interessante publicar não apenas no formato franco-belga em que eles publicaram o primeiro álbum, mas também nos formatos menos luxuosos (e mais baratos!) das coleções Olé e Super Humor, afinal são quase DUZENTOS álbuns! Porém nessa ela disse que não, pois a Asa não publica em formatos menos luxuosos. Pena! Eu queria era ver essa série se popularizar em língua portuguesa novamente...

E ficou por aí. Quando acabaram as sessões de autógrafos apareceu MAIS UM grupo musical latino-americano - mais talentoso que o anterior, admito, mas que também me botou pra correr do festival. Espero que isso não seja uma constante, ainda preciso ver as exposições!

Amanhã tem mais.

Hunter (Pedro Bouça)

-----

INTERLÚDIO

Me ocorreu que alguns leitores do Omelete talvez não tenham a mínima idéia do que seria O Decálogo. Segue então uma descrição:

O Decálogo é uma série de (apropriadamente) dez álbuns escrita por Frank Giroud e desenhada por dez artistas diferentes, aí incluídos o veterano Paul Guillon (de A Sobrevivente, publicado no Brasil pela Martins Fontes) e o famoso Franz (de Lester Cockney), cujo último trabalho foi precisamente seu álbum dO Decálogo (o último da série).

O Decálogo parte da idéia de que Maomé teria, antes de morrer, escrito em uma omoplata de camelo a versão islâmica dos 10 mandamentos, que seriam rigidamente voltados CONTRA a violência em nome da fé. Ora, ele teria morrido antes de divulgar essa última surata (um conjunto de versos do Corão) e os califas que o sucederam, interessados em promover a expansão do islamismo pela força, teriam escondido isto (convém lembrar que NÃO FOI Maomé quem escreveu o Corão. O livro foi compilado muitos anos após sua morte, a partir de passagens transmitidas oralmente e ocasionais fragmentos escritos. Tal como a Bíblia, ninguém pode dizer com certeza que o que existe do Corão desde então é fiel aos REAIS ensinamentos de Maomé). Eventualmente a omoplata seria descoberta séculos depois por soldados napoleônicos durante a Campanha do Egito, que, baseados nesta, escreveriam um livro, o Nahik, do qual só existiria um único exemplar, considerado amaldiçoado.

Embora a história acima seja o tema central, O Decálogo em si é uma coleção de 10 histórias curtas, em ordem cronológica inversa (ou seja, a primeira se passa nos dias de hoje e a última no tempo de Maomé), cada uma fornecendo peças para a compreensão da trama ao mesmo tempo em que é uma história completa em si mesma. Mais, cada uma é baseada em um dos mandamentos da surata perdida, que é o tema do álbum em questão.

Exemplo: O primeiro volume, que se passa atualmente, mostra um escritor britânico fracassado em busca de idéias para um novo romance. Sem sucesso, ele vive de fazer traduções até o dia em que uma senhora bate em sua porta e pede que ele traduza um antigo manuscrito (o Nahik) que estivera na família dela há anos. Já que ela não tem mais família e não quer que o texto se perca, ela pensa que poderia publicá-lo em inglês. O cara bota o texto em cima da mesa e esquece. O problema é que essa mulher morre pouco depois e, com remorso por não ter feito a tradução, o cara decide LER o Nahik. E acha brilhante! Decide traduzir e oferecer à editora como se fosse um texto próprio. Ele é publicado e vende horrores, transformando o cara em um escritor extremamente bem sucedido. Ao menos até o dia em que uma parente distante e desconhecida da mulher aparece e começa a chantageá-lo. Não direi o resto, mas o mandamento desse álbum em questão é Não matarás.

Sim, isso tudo lembra O Código da Vinci. Mas foi publicado bem antes...

Cada um dos álbuns tem um artista por uma razão prática: como na Europa cada artista desenha em média um álbum por ano, uma série dessas levaria 10 anos (!) para ser publicada, o que acabaria cansando os leitores no meio. Giroud raciocinou que se escrevesse a série toda antes e fizesse 10 artistas trabalharem simultaneamente nos álbuns, a série terminaria mais rapidamente e poderia ser publicada em um espaço de tempo mais comercialmente viável (dois anos e meio no caso). Deu certo e as vendas ultrapassam a marca de um milhão de álbuns até o momento!

Existe um 11° álbum, meio-HQ e meio-sourcebook, feito depois do término da série chamado O XI° Mandamento. Ele detalha algumas das pontas soltas da série.

O brutal sucesso dessa série levou à criação de dois spin-offs. O Legatário é a série que continua O Decálogo, mostrando o que aconteceu aos personagens dos dois primeiros álbuns. Já Os Fleury-Nadal conta a história da família dos escritores do Nahik. Ambas as séries são recentes e só têm um álbum até agora. Diferente dO Decálogo, elas são desenhadas por um único artista cada.

O Decálogo foi publicado na França pela Glénat e em Portugal pelas Edições Asa. Não tem edição brasileira, mas, com o sucesso do Código da Vinci e a polêmica sobre o fundamentalismo muçulmano, bem que merecia ser publicado por aí...

Hunter (Pedro Bouça)

*****

DIA 3

O dia foi um inferno, mas não por culpa do festival.

Hoje caiu a maior chuva que eu vi nos últimos anos, acompanhada por uma substancial ventania (tornando impossível o uso de guarda-chuvas), uma temperatura relativamente alta (tornando o uso de sobretudo e/ou capa de chuva desconfortável) e o colapso do transporte público lisboeta (acham o serviço de ônibus brasileiro ruim? Vocês precisam ver o português!). Resultado: Cheguei ao local do festival MUITO depois do que eu queria, ensopado (metade de chuva, metade de suor) depois de ter marchado 15 minutos (ladeira acima...) do metrô até lá.

Apesar de tudo, cheguei a tempo de pegar a conferência do Frank Giroud. O tradutor tinha ficado preso no trânsito também!

O autor falou bastante do processo de criação dO Decálogo. Aproveitei para perguntar se ele tinha tido problemas com os fundamentalistas muçulmanos. Ele disse que não, porque para os fundamentalistas não apenas a imagem do Profeta mas TODAS as imagens de seres humanos são proibidas, portanto nenhum deles lê quadrinhos! Ele adicionou que usara a temática muçulmana em apenas três dos dez álbuns (o 2, o 9 e o 10) e escolhera ela primeiro porque a sua idéia original (uma maldição egípcia) era muito manjada, depois porque ele ficara indignado com o ataque dos fundamentalistas a autores como Salman Hushdie e pretendia denunciar isso (o que fez no segundo álbum). Mas disse também que a reação dos fundamentalistas pode aparecer no segundo volume dO Legatário (continuação da série publicada atualmente), em que ele mostrará o Profeta Maomé... Na capa!

Nosso amigo Giroud certamente procura sarna para se coçar...

Fora isso, ficamos sabendo que a Asa deve publicar o 11° volume dO Decálogo ano que vem. Não saiu ainda porque leva tempo traduzir um álbum de 100 páginas em que maior parte é texto corrido.

No campo de autógrafos, consegui mais um do Barbucci e um do Denis. Dei de presente ao Barbucci um encadernado de capa dura português com a primeira história de WITCH, que ele desenhou (as editoras Disney pelo mundo não dão exemplares de cortesia a autores estrangeiros).

Aproveitei para dar uma olhada melhor na exposição internacional. Vi HQs africanas (a mais inusitada foi uma HQ de prevenção feita em Moçambique com um desenhista estilo Image anos 90!), mais latino-americanas, argentinas (eles definitivamente chutam bundas, vi até páginas originais de Alberto e Enrique Breccia! São de uma beleza incomparável), chilenas (orginais de Condorito! Legal!!!) e... brasileiras (com direito a originais do Maurício do tempo em que ele desenhava a Mônica bicudona e material mais recente. Mas a mais surpreendente foi uma página do Collonese de um anúncio do Instituto Universal Brasileiro! YES! YES!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!). Não tive tempo de ver tudo (por que diabos o Festival fecha às 20hs?), mas o material brasileiro até não fazia tão feio perto do argentino, ainda que aquele fosse inegavelmente superior.

Compras? Só uns álbuns da Asa (o Making Of do primeiro Blacksad, o álbum do Denis para ele autografar e o único Mortadela e Salamão da Asa, que eu devo mandar para um amigo). Não estava com humor para mais depois do inferno astral que eu passei.

Sábado que vem eu volto. Estarão lá Fréderic Boilet (O Espinafre de Yukiko), Aurelia Arita (namorada dele, também autora) e Etienne Davodeau (Les Mauvaises Gens, vencedor de três prêmios em Angoulême este ano!), todos participantes do coletivo de autores Japon (coleção de histórias organizada por Boilet que reúne artistas europeus e japoneses falando sobre o Japão). Tenho um exemplar desse, que eu espero encher de autógrafos...

Hunter (Pedro Bouça)