Os quadrinhos tendem a ser conhecidos por trazerem mitologias em suas páginas. Entretanto, os bastidores dessas histórias, ao seu próprio modo, também têm suas mitologias, com enredos repletos de heróis e vilões, reviravoltas, intrigas palacianas e realidades paralelas que se interseccionam. É esse ambiente trêmulo entre a realidade e a ficção que Chip Zdarsky usa como capital narrativo na história em quadrinhos Domínio Público — Volume Um: Erros do Passado, recém-lançado pela editora Pipoca & Nanquim.
Pipoca & Nanquim/Divulgação
A obra, que venceu o prêmio Eisner de melhor nova série e foi indicada ao Harvey de livro do ano, é protagonizada pelos irmãos Miles e Dave. O primeiro é um jornalista na sarjeta que há pouco perdeu tudo — a esposa, o dinheiro, o juízo. O segundo é um tatuador que nunca teve nada disso, então é mais leve e bem-humorado na condução — bastante frouxa, por sinal — que faz da própria vida. Em uma expressão do humor corrosivo do autor, Dave tatua o que bem entende em seus clientes, mesmo que eles não concordem com as propostas artísticas do sujeito ou até mesmo percebam o que ele está fazendo.
Ambos são filhos de Syd Dallas, desenhista criador do super-herói Domínio, espécie de Batman menos carrancudo — mas que, assim como o Homem-Morcego, é um fenômeno pop, uma verdadeira mina de ouro sendo explorada em quadrinhos, filmes e toda sorte de produtos licenciados. Syd não se tornou tão celebrado e bem remunerado quanto Jerry Jasper, o roteirista milionário que levou a fama de ser o criador do Domínio — uma referência a Stan Lee (1922–2018).
Enquanto Syd é simpático, humilde e de bem demais com a vida para ter se tornado um ricaço, Jerry, por sua vez, tem as medidas certas de arrogância e estridência para seguir o caminho oposto. Syd leva uma vida pacata e se contenta com o tem. Quando ele é convidado para ir à estreia do novo filme de Domínio, a Singular — estúdio de cinema e editora de quadrinhos responsável pelo super-herói — lhe dá um par de passagens de avião e US$ 5 mil. Syd dá de ombros. Para ele, passar discretamente pelo tapete vermelho e se sentar ao fundo da sala de cinema é o bastante para curtir ver na telona o herói que ele criou em carne e osso. Em clara referência a Jack Kirby (1917–1994), Syd trabalha em um escritório no subsolo da casa em que vive com a esposa e mãe de Miles e Dave, Candy.
Talvez tanta tranquilidade assim tenha colaborado com as rusgas não elaboradas pela família. Candy tem suas próprias opiniões sobre Syd ter abdicado da fortuna após passar tantos anos se dedicando aos quadrinhos do Domínio. Já Miles tem ciúmes do personagem; a relação entre pai e filho é arredia e repleta de mágoas. Tudo isso vem à tona quando Tanya, assistente de Jerry Jasper, encontra um documento que confirma Syd como o autor de Domínio. A personagem, que serve de avatar do leitor no universo corporativo da indústria pop, entra em contato com Syd para informá-lo sobre o papel. Em meio a tantos ressentimentos, a família Dallas se mobiliza para entrar com uma ação judicial contra a Singular e reivindicar a autoria e os royalties.
Os ecos desse cenário com a vida real são inconfundíveis. Nos 1960, Jack Kirby e Stan Lee criaram juntos uma montanha de propriedades intelectuais, como X-Men, Quarteto Fantástico, Pantera Negra, Homem de Ferro, Thor, Homem-Formiga, Capitão América e Hulk, entre outros personagens de uma lista de mais de 200 itens. No entanto, o modelo de contratação “work for hire” (contrato por trabalho) da Marvel fez da editora a detentora legal dos direitos autorais dessas propriedades intelectuais. Nada de royalties para Kirby.
O desenhista abandonou a Marvel no fim dos anos 1960 por uma miríade de razões, entre elas a falta de reconhecimento, e foi trabalhar na concorrente, a DC. Enquanto os anos se passavam e a injustiça continuava, Lee se tornou o rosto da Marvel, o sinônimo da empresa e vice-versa, fazendo pontas nos filmes e aparições em tapetes vermelhos. O nome de Kirby nunca brilhou com a mesma intensidade que o de Lee para além do nicho de aficionados por quadrinhos de super-heróis.
Após 15 anos da morte de Kirby, a Disney havia comprado a Marvel por US$ 4 bilhões — ou algo perto dos R$ 20 bi na cotação atual —, o que chamou a atenção dos filhos de Kirby. Naquele mesmo ano, Barbara, Lisa, Susan e Neal entraram com uma ação contra a Marvel, reivindicando os direitos autorais do pai sobre as centenas de criações e os royalties de incontáveis licenciamentos dessas marcas. O processo dos filhos de Kirby chegou à Suprema Corte dos Estados Unidos e foi resolvido em um acordo, cujos termos não foram divulgados.
O documentário recente do Disney+ sobre Stan Lee passa longe de ser uma oportunidade de reparação aos olhos do público. Enquanto o simpático filme deixa clara a importância de Lee enquanto editor, roteirista e “marketeiro” de primeira grandeza, Kirby é relegado a um papel de coadjuvante na criação dos personagens fundamentais para o entretenimento deste século e para a cultura pop do século XX. Neal, filho de Kirby, se manifestou no X, o antigo Twitter, sobre a produção. “Stan Lee teve a sorte de ter o acesso ao megafone da mídia, e usou isso para criar um mito sobre a criação do panteão da Marvel”, disse. “Ele fez de si mesmo a voz da Marvel. Por muitos anos, ele foi o único homem creditado por isso, e — como foi abençoado com uma longa vida — o último homem creditado por isso.”
Steve Ditko (1927–2018) é outro nome de imensa estatura que, no documentário, é tratado como nota de rodapé. Com Lee, o desenhista criou o Homem-Aranha e o Doutor Estranho, mas nunca se sentiu plenamente reconhecido por isso, como foi explorado por inúmeras biografias, a exemplo de Marvel Comics: A História Secreta, de Sean Howe (Leya, 2013). Em 1965, a partir da publicação de Spider-Man #25, Ditko passou a ser creditado e remunerado como autor dos enredos (“plotter”), além de desenhista, das histórias do Aracnídeo. Cada vez mais influenciado pela filosofia objetivista de Ayn Rand, o artista refletia as ideias propostas pela autora ao reivindicar tratamento justo dentro da editora e no comportamento agressivo que Peter Parker reservava aos colegas de faculdade, esquerdistas adeptos à contracultura da época, que protestavam no campus. Isso fez o relacionamento de Ditko com Lee e Martin Goodman, o então publisher da Marvel, azedar. Ditko deixou a editora em 1966 — assim como Kirby, sem nunca ter sido contratado, recebido royalties ou pelo menos um plano de saúde. Kirby e Ditko eram “apenas” freelancers.
Marvel Comics/Reprodução
Em 2021, o irmão mais novo de Ditko, Patrick, representando o espólio do desenhista, processou a Marvel exigindo reparações. Ele o fez em parceria com os espólios de Don Heck (co-criador de Homem de Ferro, Viúva Negra e Gavião Arqueiro, entre outros), Gene Colan (co-criador de Carol Danvers, Falcão e Blade) e Don Rico (co-criador da Viúva Negra). A Marvel os processou de volta, alegando as condições do “work for hire”. Em 2023, a editora e os advogados encerraram os casos com acordos sigilosos.
Brigas por direitos autorais atravessadas por décadas de rancor não são histórias só da Marvel, mas da DC também. Algo semelhante aconteceu com os criadores do Superman, o roteirista Jerry Siegel e o desenhista Joe Shuster. Em 1948, 10 anos após eles cederem gratuitamente os direitos autorais do personagem à DC, então chamada National Comics, a dupla processou a editora pedindo a propriedade sobre Superman e Superboy; as partes chegaram a um acordo, em que a dupla embolsou a quantia de US$ 94 mil (hoje, algo perto de R$ 465 mil). Superman, assim como o Domínio da HQ de Zdarsky, havia se tornado uma mina de ouro, então nada mais justo que seus criadores também recebessem uma fatia da grana arrecadada. Mas a disputa não parou por aí.
Em 1992, após Shuster morrer aos 78 anos, os irmãos e herdeiros do desenhista, Jean e Frank, concederam à DC os direitos sobre os personagens em troca de um estipêndio anual de US$ 25 mil (aproximadamente R$ 124 mil na cotação atual). Quatro anos depois, quando Siegel morreu, os herdeiros dele, a viúva Joanne e os filho, Michael e Laura, lançaram mão de uma condição prevista por lei que, naquela época, davam a eles a chance de negociar com a DC. Perto da virada do século, eles conseguiram se tornar detentores de 50% dos direitos autorais do Superman. Aceitaram um acordo milionário com a Warner Bros., no qual receberam US$ 3 milhões, um estipêndio anual de US$ 500 mil e royalties. Nada mal para a família Siegel, pois nos anos 1970, quando a Warner anunciou que faria o longa-metragem de Superman dirigido por Richard Donner, o roteirista se autodeclarou pobre ao se posicionar contra a produção.
No início dos anos 2000, eis que entra em cena o advogado e produtor de cinema Marc Toberoff. Naquela ocasião, ele já era um dos mais importantes advogados de direitos autorais dos EUA e representava na Justiça americana o espólio de Jack Kirby. Toberoff se uniu aos herdeiros de Shuster e Siegel em uma tentativa de conseguir os direitos sobre o Superman, porque ele próprio queria adquirir o personagem para atuar como produtor de filme do super-herói.
Em 2014, a 9ª Corte Federal de Apelações de São Francisco, Califórnia, decidiu a favor da Warner contra os Shuster e encerrou a possibilidade da família de reivindicar novamente os direitos autorais. Dois anos depois, o mesmo tribunal decidiu contra os Siegel, alegando que, assim como os Shuster, no início deste século eles haviam assinado acordos de transferência da autoria do Superman à DC e, portanto, esses acordos ainda estariam valendo.
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É no mínimo irônico lembrar que, algo como 76 anos antes desse desfecho, Siegel e Shuster receberam um cheque de US$ 130 (aproximadamente R$ 650 na cotação atual) pelas tirinhas de Superman publicadas na Action Comics e abriram mão dos direitos autorais. Esse movimento ingênuo da dupla é reproduzido pelos personagens principais do romance vencedor do Pulitzer As Incríveis Aventuras de Kavalier e Clay (2000), de Michael Chabon, que se inspira na ascensão da Era de Ouro dos quadrinhos.
Como se vê, o mundo dos negócios pode ser cínico e frio, e em Domínio Público isso é representado, em parte, por “Dee” Donovan, irmã de Jasper e CEO da Singular. Feroz com as palavras e nos negócios, ela provoca Miles, questionando se um documento velho poderia derrubar o império bilionário comandado por ela.
“Dee” Donovan pode não existir na vida real, mas sua essência, sim. Foi para fazer um contraponto a essas explorações que, em 1992, foi fundada a Image Comics, por um grupo de sete artistas que incluía Jim Lee, Rob Liefeld e Todd McFarlane, todos com ampla experiência na Marvel e na DC. A Image é “creator-owned”, ou seja, os artistas que ela publica não abdicam de autoria de seus personagens e histórias. Por adotar essa postura, a editora abriu precedente para outras empresas do ramo, como a Dark Horse, a IDW e a Boom! Studios, seguirem o mesmo modus operandi — e hoje elas são concorrentes de peso à Marvel e à DC. A fundação da Image, vale dizer, é o primeiro resultado favorável para os artistas que se concretizou após décadas de ações judiciais contra as editoras do Superman e do Quarteto Fantástico; de tentativas de criação de sindicatos e de leis; e de experimentações com modelos de trabalho diversos realizados pelos artistas dos quadrinhos da contracultura.
Se a essência de “Dee” Donovan existe no mundo real, a de Syd Dallas também existe. Ele poderia ter visto isso tudo acontecer. É uma sugestão interessante, considerando a proposta da HQ de habitar um mundo ficcional tão próximo à nossa realidade. Mas Zdarsky vai além dos comentários cáusticos que se propõe a fazer — inclusive sobre a atual estafa no cinema e na TV causada pelos super-heróis — e da irresistível qualidade “meta” com que embala Domínio Público.
O quadrinho de Zdarsky parece ser como um filme de James L. Brooks, como Laços de Ternura (1983) ou Nos Bastidores da Notícia (1987), em que os personagens se amontoam em espaços simbólicos pequenos demais para acomodar tantas idiossincrasias. Eles brigam e reatam, se desentendem e se entendem, se desencontram e encontram de maneiras inesperadas. Em Domínio Público, as relações humanas importam mais do que dinheiro e contratos — e valem a pena por isso, como o leitor há de constatar nas últimas páginas. Já em relação às primeiras, não é preciso avançar além da quinta para entender o alvoroço em torno do grande autor, que já colaborou várias vezes com a Marvel e a DC. Enfim, a ironia.
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Domínio Público - Volume Um: Erros do Passado, de Chip Zdarsky
Tradução: Dandara Palankof
Páginas: 124
Editora: Pipoca & Nanquim
R$ 79,90