Nas histórias em quadrinhos, muitas vezes, acontece de uma personagem inicialmente imaginada para atuar como coadjuvante, programada para aparecer em apenas alguns poucos episódios e depois mergulhar no esquecimento, tomar metaforicamente para si as rédeas de seu destino e se recusar ao descarte. Muitos exemplos desses podem ser encontrados na história dos quadrinhos, mas provavelmente o representante mais destacado dessa tendência é ainda um marinheiro caolho, de linguagem atrapalhada e com um perene cachimbo em sua boca torta. Uma personagem visualmente pouco atraente, com antebraços disformes, baixo, de pernas curtas, que, no entanto, mergulharia no inconsciente coletivo de seus leitores e, nos anos seguintes ao seu lançamento, influenciaria a sociedade norte-americana como poucos astros de histórias em quadrinhos conseguiram.
O marinheiro Popeye mexeu com a vida de seus leitores de várias formas. Influenciou sua comunicação pela inclusão de inúmeras palavras novas ao vocabulário dos norte-americanos, como jeep, wimpy e goon, entre outras; e afetou de forma irremediável até mesmo sua dieta alimentar, levando muitos deles a incluir em suas refeições diárias uma verdura que muitos tinham dificuldade para deglutir, o espinafre. Além disso, divertiu várias gerações de leitores de uma forma muito peculiar, explorando um tipo de humor simples e direto que o destacou entre as produções de seu tempo.
O TEATRO DO DEDAL
A personagem surgiu dentro de uma série publicada no Evening Journal, de Nova Iorque, um dos muitos jornais do império de comunicações de William Randolph Hearst. Lançada em 19 de dezembro de 1919, foi idealizada pelo ainda desconhecido desenhista de Illinois, Elzie Crisler Segar, dono de um traço caricaturesco e pouco desenvolvido. No entanto, os poucos méritos do autor no campo da ilustração foram amplamente compensados por seu domínio da técnica narrativa, resultando em uma obra que rapidamente caiu nas graças do público leitor. Chamava-se Thimble Theatre (em português: Teatro do Dedal) e não girava em torno de uma única personagem, enfocando muito mais uma variedade de situações pitorescas.
Na série, pontificavam elementos característicos da sociedade de classe média norte-americana. Caracterizou-se principalmente pelo desenvolvimento de longas narrativas de fundo cômico e picaresco, povoada por personagens que agradaram bastante os leitores de sua época. Como protagonistas, destacavam-se os dois membros mais proeminentes da família Oyl, a jovem Olive Oyl (no Brasil, Olívia Palito) e seu irmão Castor, além do namorado da primeira, Ham Gravy. Deles surgiam todas as tramas e situações hilariantes, normalmente envolvendo o ladino Castor e sua busca por riqueza sem esforço. Uma temática singela, que Segar conseguia explorar com verdadeira maestria.
O ESTRELATO INESPERADO
Foi numa dessas iniciativas por dinheiro fácil que surgiu o marinheiro mais popular das histórias em quadrinhos. Ocorreu, diga-se de passagem, em um momento especialmente providencial para a série, pois ela vinha tendo paulatinamente reduzido o numero de jornais onde conseguia ser veiculada. Havia sido mantida, tal como aconteceria também com Krazy Kat, a grande obra-prima dos quadrinhos de autoria de George Herriman, apenas pela predileção especial de um leitor com bastante peso nas decisões de circulação dos jornais, o big boss William Randolph Hearst. Mas talvez nem mesmo o apoio de Hearst tivesse sido suficiente para prolongar por muito tempo a vida de Thimble Theatre nos veículos impressos, não tivesse Popeye surgido naquele momento. Mas ele apareceu, felizmente. E mudou tudo.
O aparecimento de Popeye foi inesperado: Castor necessitava de alguém para dirigir um barco até uma ilha misteriosa, onde pretendia utilizar os poderes mágicos de uma galinha (Whiffle Hen) para acertar todas as apostas. O encontro entre os dois tornou-se memorável, já introduzindo os leitores no palavreado característico do marinheiro e que depois viria a se tornar um de seus aspectos mais distintivos: Hey, there! Are you a sailor&qt;& perguntou Castor. Ja think Im a cowboy&qt;& perguntou a personagem de olho vazado (Pop-eye), vestindo roupas de marinheiro. Foi imediatamente contratado para se desincumbir de doze tarefas ao mesmo tempo. E achou que tinha feito um ótimo negócio.
Desta maneira desajeitada, Popeye entrou na história dos quadrinhos. Para ficar. Quando o criou, seu autor provavelmente não tinha ainda a mínima idéia de que, em pouco tempo, o marinheiro assumiria a série, mesmo que a denominação Thimble Theatre continuasse a ser utilizada durante praticamente toda a sua existência. Mas foi o que Popeye, ajudado pela sensibilidade de Segar, acabou fazendo. O desenhista percebeu o atrativo que este tinha para os leitores e passou a explorá-lo cada vez mais. Assim, colocou-o rapidamente no papel de lutador profissional, onde ele poderia exercitar à vontade um de seus principais atrativos, a força física incomum. Deu certo, é claro.
UM SUPER-HERÓI MOVIDO A ESPINAFRE
As principais características de Popeye começaram a emergir e tomar sua forma definitiva exatamente nesse ambiente de combates físicos. Aos poucos, tornou-se evidente para todos que ele não era simplesmente forte. Ele era incrivelmente forte. Imbatível, mesmo. Quase invulnerável, também, resistindo com facilidade a ataques que jogariam qualquer outro no hospital. E os leitores começaram a se perguntar de onde viria tanta força. A explicação engendrada por Segar, ainda que mais explorada nos desenhos animados da personagem que propriamente nos quadrinhos, acabou possibilitando a retomada de um ramo da indústria alimentícia: Popeye obtinha sua força sobre-humana da ingestão regular de espinafre (aaaarrrgh!!!). Também deu certo. De uma certa forma, Popeye foi o primeiro e também o mais estranho -, super-herói dos quadrinhos, realizando façanhas que depois seriam repetidas tanto pelo Super-Homem, de Shuster e Siegel, como pelo Capitão Marvel, de C. C. Beck.
COADJUVANTES ADORÁVEIS
No ambiente pugilístico também surgiu, inicialmente como juiz das lutas, outra personagem memorável de Segar, o gorducho Wimpy (no Brasil, Dudu ou Pimpão), o maior comedor de hambúrgueres já idealizado para entretenimento dos leitores e, também, a criatura mais baixa, infame, desprezível, aproveitadora, oportunista, auto-centrada, egoísta, e outras dezenas de qualificações negativas que deixam de ser aqui incluídas para não cansar a leitura. E, no entanto, apesar disso tudo, também o patife mais simpático e interessante que já transitou pelos gibis. Autor de frases memoráveis, como Ill gladly pay you Tuesday for a hamburger today (Eu pagarei com satisfação na terça-feira por um hambúrguer hoje), Lets you and him fight (Que você e ele briguem) e Come up to the house for a duck dinner. You bring the duck (Passe lá em casa para comer um pato no jantar. Você leva o pato). Outro que também deu certo.
Várias outras personagens participam das histórias de Popeye, em sua grande maioria criadas pelo gênio de Segar. Juntos, representam um universo ficcional que atravessou décadas sem perder seus atrativos, sendo transposto com enorme sucesso para os desenhos animados pelos irmãos Fleischer e depois seguindo bem sucedida carreira na televisão. Dentre tantos, pode-se destacar o filho adotivo do marinheiro, o pequeno Sweepea (no Brasil, Gugu ou Zezé); o eterno rival Brutus; o misterioso e mágico animalzinho denominado Eugene o Jeep: Poopdeck Pappy, o pai do marinheiro, perdido e reencontrado; a misteriosa Alice, the Goon, primeiramente vilã e depois incorporada às hostes do Bem; e a maior inimiga de Popeye, a última bruxa verdadeira na face da Terra, a terrível Sea Hag (a Bruxa do Mar)
NAMORO POR ENGANO
No entanto, de todas personagens a transitar em volta do marinheiro, talvez a mais memorável seja mesmo aquela que este elegeu como o centro de sua vida, a sua eterna e sempre exigente namorada. Poucos dias depois de surgir em Thimble Theatre, Popeye conheceu Olívia Palito, que estava escondida no barco que ele comandava. Nos primeiros encontros, nada prenunciava o relacionamento amoroso entre os dois, talvez o mais duradouro dos quadrinhos. Quase que se ignoravam mutuamente. Não foi amor à primeira vista o que os uniu. Foi muito mais amor ao primeiro beijo, o que ela deu em Popeye, supostamente por engano, segundo explicou depois, por pensar que se tratava de Ham Gravy, o seu namorado de então. Mas a desculpa chegou tarde, já o coração do marinheiro não mais lhe pertencia, estava totalmente dominado pela imagem daquela mulher alta, disforme, magérrima, de pescoço comprido e pés desproporcionais... uma figura totalmente sem atrativos. Aos poucos, ela também foi correspondendo ao amor do marinheiro, colocou o namorado a escanteio e assumiu totalmente o romance com Popeye. Transformaram-se nas duas faces de uma mesma moeda. Inseparáveis. Zelosos um do outro. Amantíssimos.
Após o encontro, a maioria das histórias passou a girar em torno deles, e muitas personagens foram acrescentados em função do que os unia, como o já mencionado Brutus, o mais constante adversário de Popeye, o único que acredita poder um dia vencer o marinheiro em uma luta e assim ganhar o amor da jovem (o que fará com ele, fica a cargo da imaginação de cada um...). Tudo em vão. O coração da protagonista sempre há de pertencer apenas ao marinheiro e dele jamais se afastará. Um exemplo para jovens amantes no mundo inteiro, constituindo talvez a melhor frase a ser inscrita em qualquer cartão de núpcias: que o seu amor dure tanto quanto o de Popeye e Olivia Palito...
Infelizmente, Elzie Crisler Segar não acompanhou por muito tempo o romance entre seus dois personagens mais famosos. Faleceu de leucemia em 1938, menos de dez anos depois da criação de Popeye. Sua obra foi continuada inicialmente por Tom Sims e Bela Zaboly, sem grande destaque, e depois por Bud Sagendorf, antigo discípulo de Segar, que conseguiu retornar à personagem muito de seu brilho original.
Leituras recomendadas
GRANDINETTI, Fred. M. Popeye: An illustrated history of E. C. Segars character in print, radio, television and film appearances, 1929-1993. Jefferson, North Carolina; London : McFarland & Company, 1994.
SAGENDORF, Bud. Popeye: The first fifty years. New York : Workman Publishing; King Features Syndicate, c1979.
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