HQ/Livros

Entrevista

Emil Ferris fala da dificuldade de criar sua obra e dá dica a novos artistas

O segundo volume de Minha Coisa Favorita é Monstro está à venda no Brasil

23.11.2024, às 06H00.

Antes de mais nada, vou confessar que Minha Coisa Favorita é Monstro (My Favorite Thing is Monsters, da Quadrinhos na Cia.) está entre as melhores coisas que já li em Histórias e Quadrinhos, ao lado de obras como Maus, de Art Spiegelman, e Asterios Polyp, de David Mazzucchelli, entre tantas outras. Quando o primeiro livro saiu aqui no Brasil, ele já tinha recebido alguns dos principais prêmios de literatura e HQs, incluindo aí dois Eisner Awards e uma indicação ao Hugo, prêmio de ficção científica e fantasia. Na época tentei falar com a autora, Emil Ferris, mas não rolou, pois ela já estava ocupada, promovendo o primeiro livro e/ou fazendo a segunda parte, que acaba de chegar aqui no país.

Talvez o assunto do e-mail que mandei para a editora dessa vez tenha ajudado. Escrevi assim: "Minha Coisa Favorita é Emil Ferris!". E é verdade! Além de achar a sua obra de estreia maravilhosa, acompanhei a gravação da entrevista dela durante a CCXP Worlds, em dezembro de 2020, no meio da pandemia. E foi legal demais! Se eu já era fã, me candidatei ao cargo de presidente do fã-clube.

Então, para os outros fãs, pedi para Emil listar o que mais está na sua lista de coisas favoritas além dos monstros, começando por outras HQs:

  • Os quadrinhos da EC Comics: "Eu amava quando era criança. E ainda amo!"
  • Maus, de Art Spiegelman: "Eu releio periodicamente"
  • Os quadrinhos de Alison Bechdel, Chris Ware, Lynda Berry;
  • Life in Hell, do Matt Groening: "Amo enormemente!"
  • Babe in the Woods, de Julie Heffernan: "apenas lindo demais!"
  • 1984, de Fido Nest: "O trabalho dele é sensacional. Fiquei impressionada com o projeto e fiquei orgulhosa da editora que pegou e trouxe essa adaptação agora. É perfeita!"
Mas voltando ao segundo volume de Minha Coisa Favorita é Monstros, Emil contou que o processo todo de criação não foi mais fácil, pois ela teve que investir parte do seu tempo na promoção do Livro 1. Coube à protagonista, uma menina (fictícia e semi-autobiográfica) de 10 anos, o trabalho de brigar com a autora para que o livro saísse. "Nós temos musas e elas nos dizem o que fazer. E Karen me disse o que ela faria e o que não faria. Ela brigou comigo. E tive que obedecer e pensar no que ela precisava. Ela não está completamente feliz comigo sobre isso. Tinha outras coisas que ela queria dizer e eu vou trabalhar nisso, ou estou ferrada", concluiu a autora.
 
Ouvindo isso e olhando para as páginas do livro, dá quase para ouvir a voz da Karen. As quase mil páginas dos dois volumes funcionam como um diário da pré-adolescente e têm alguns digressões ou diálogos bastante longos, que cobrem  todos os espaços em branco. Porém, sem deixar a leitura cansativa ou chata. Emil dá voz à personagem de um jeito coloquial e com pensamentos que vão se conectando que é mágico. Perguntei à autora se ela concordava com a seguinte definição de Karen: ela é uma menina de 10 anos que é pura, mas não ingênua.
 
"Que lindo! Eu adorei. Obrigada! Posso usar? [risos] Acho que é Karen está vivendo um momento da vida humana que é, como você colocou, antes de você se tornar impura e quando você começa a ver quem são as pessoas ao seu redor, cada um por si, e quem você é. É um momento interessante. O futuro não vai ser fácil para ela. Isso é algo que sempre estou de olho - serve para os homens, mas ainda mais para as mulheres - porque a partir da adolescência as coisas ficam perigosas para as mulheres, que podem ficar grávidas", disse.
 
Apesar de mostrar de forma brilhante este amadurecimento precoce de Karen, Emil também é muito sensível ao colocar ao seu lado Deeze, o irmão mais velho. "É igualmente difícil crescer homem porque as expectativas sobre a vida masculina são realmente intensas e extremamente difíceis. Deeze é um ser humano simples, imperfeito, belo, gentil, horrível e maravilhoso que quer apenas proteger sua irmã em um mundo criminoso, difícil", descreveu.
 
E o mundo real em que Emil vive também se mostrou bastante difícil. Depois de sobreviver a um raro caso de febre do Nilo Ocidental que chegou a limitar sua mobilidade a ponto de impedi-la de segurar uma caneta para desenhar, vamos lembrar que Minha Coisa Favorita é Monstro era o primeiro trabalho dela como autora e que ela literalmente passou fome e viveu da ajuda de amigos, que enviavam dinheiro para ela enquanto ela se ocupava de criar a história de Karen. Um destes amigos chegou ao estúdio de Emil durante a entrevista e se colocou em uma mesa no fundo. A autora lembrou do momento, falando que nada mais importava para ela.
 
"Eu só queria terminar o livro e fazer o melhor possível. Não importava se eu fosse à falência, se fosse despejada e tivesse que morar na rua. E eu esperava que alguém o lesse um dia, mas não sabia se isso ia acontecer. Cheguei a sonhar que eu ia morrer e o livro ia ser achado e as pessoas iam começar a passá-lo de mão em mão depois de lê-lo e virar algo underground. Eu fiz o livro com a ideia de que existem pessoas que precisavam dele. Os que não gostaram, é porque não era para eles. Estou dizendo isso porque neste momento existem escritores trabalhando nos seus livros, coreógrafos criando danças, artistas pintando sem saber se sua arte vai ser importante no mundo. E não importa! Elas precisam continuar criando!"
 
E por falar em criação, Emil recria em algumas páginas dos seus livros obras de arte centenárias que estão no Museu de Arte de Chicago, onde Karen costumava passear com seu irmão. E cada desenho seu poderia também estar à disposição do público em museus. Ela contou que estava terminando de organizar alguns desenhos que iam para exposição em uma galeria e detalhou um pouco do seu processo de criação, que não tem um tempo estimado para terminar. "Tenho este desenho da Esfinge e Édipo, de Gustave Moreau, que é diferente da versão do livro. É linda. Levei um dia, talvez, um dia e meio ou dois. Não me lembro. Mas mesmo depois que o trabalho está supostamente pronto, eu olho e coloco mais alguns traços e tem uma magia ali. Tem algo que eu sinto entre os dois: a garra, o cheiro do pêlo, se ela está com fome a ponto de comê-lo? É algo sexual? Todos estes sentimentos entram no desenho. É como um feitiço que eu quero passar para quem estiver vendo também. Eu coloco este tipo de pensamento nos meus desenhos. E não tem um tempo definido para isso porque pode levar um bom tempo. E isso me ajuda a desenvolver a história, porque estes são os sentimentos da Karen também, então aproveito e escrevo um pouco junto e isso aumenta a história", concluiu.
 
Os dois volumes de Minha Coisa Favorita é Monstro foram publicados no Brasil pela Quadrinhos na Cia, com tradução do meu amigo Érico Assis e estão disponíveis nas melhores livrarias.