Foi só eu revisar, publicar e divulgar a última coluna, há duas semanas, que a bomba caiu: o grupo Companhia das Letras comprou 70% da editora JBC. A notícia veio em nota oficial das duas editoras e, entre todo mundo com quem eu falei, foi uma surpresa de queixos batendo no chão.
E aí, menos de 24 horas depois, Marcello Quintanilha ganhou o Fauve d’Or de Angoulême por Escuta, Formosa Márcia. Ainda estamos em março, mas vai ser difícil outra notícia superar estas duas no mercado de quadrinhos brasileiro em 2022.
Já falo de Quintanilha e de Márcia. Antes: Companhia e JBC.
A Companhia das Letras não é só o maior grupo editorial do Brasil – ela também faz parte do maior grupo editorial do mundo. Fundada em 1986, a editora brasileira foi parcialmente vendida para a Penguin, um grupo britânico, em 2011. Em seguida a Penguin virou Penguin Random House, um guarda-chuva de mais de 350 editoras de médio e grande porte. A PRH, por sua vez, é parte de um guarda-chuva de mídia bem maior, o Bertelsmann.
A Penguin Random House/Bertelsmann passou a controlar a maior parte da Companhia das Letras em 2018. Aí o grupo começou a se expandir no Brasil: já tinha engolido a editora Objetiva em 2015 (dentro de outras fusões nos guarda-chuvas dentro de guarda-chuvas), comprou a Zahar em 2019 e a Brinque-Book em 2020. A JBC é mais uma aquisição do guarda-chuva dentro do guarda-chuva dentro do guarda-chuva.
A Companhia publica quadrinhos desde os anos 1990. Oficializou um selo de HQ, o Quadrinhos na Cia., em 2009 e ali reúne a fina flor dos best sellers internacionais: Maus, Persépolis, Tintim etc. O selo Seguinte, também da Companhia, publica quadrinhos como Heartstopper e Arlindo. Objetiva e Zahar já publicaram HQ. Nenhuma delas passou perto do quadrinho japonês, porém.
A JBC publica mangás no Brasil desde 2000, com Video Girl Ai e Samurai X. Antes dela e da editora Conrad, praticamente não havia mangás nas bancas brasileiras – e certamente não em sentido de leitura oriental, modelo que as duas editoras firmaram por aqui. Séries importantes, como Cardcaptor Sakura, Cavaleiros do Zodíaco, Fullmetal Alchemist e Akira passaram pela JBC, que também se aventurou em algumas produções com autores nacionais, como Combo Rangers e The Flower Pot.
Uma das coisas que Companhia/Penguin Random House/Bertelsmann sabem é que mangá é o setor que mais cresce no mercado editorial. Do mundo inteiro. Nas livrarias dos EUA, as vendas de mangá subiram 171% entre 2020 e 2021. (As de gibis de super-herói? 2%.) Na França, vendeu-se 47 milhões de mangás no ano passado, contra 22,5 milhões em 2020 – o mercado mais do que dobrou.
No Brasil, esses números não são abertos. (Vale a pena ouvir a explicação de Guilherme Kroll no Universo HQ em Resenha.) Sabe-se que o mangá começou a disputar posições com todos os livros mais vendidos nas livrarias brasileiras há poucos anos, e que esses números também vêm crescendo. Um dos indicativos são as reimpressões: Panini, JBC e outras estão mais ágeis em repor estoques de edições que esgotaram, reclamação antiga dos leitores. O motivo para eles atenderem à reclamação? Tem mais leitores.
Sabendo desses números, tendo experiência com quadrinhos, sendo o maior grupo editorial do Brasil, tendo todos os recursos de um conglomerado internacional, bastava o grupo Companhia das Letras começar a publicar mangás, né? Só que não dá.
Se você perguntar a qualquer editor brasileiro, vai ouvir a mesma resposta: para publicar mangá, você tem que cultivar uma relação com os japoneses. Antes de comprar os direitos de publicação de Tokyo Revengers, a editora brasileira precisa ter se provado para a Kodansha com boas edições de Seven Deadly Sins, Fairy Tail, Ghost in the Shell e provavelmente mais títulos. Isso leva anos.
Além disso, os licenciadores japoneses tendem a ser mais meticulosos do que os norte-americanos ou europeus. Querem saber detalhes do conteúdo da edição brasileira. Querem conferir a tradução. São chatos quanto às capas. Com os números que esses mangás têm atingido no ocidente, os japoneses se sentem ainda mais no direito de cobrar detalhes.
Tudo isso toma tempo e uma sintonia especial entre a editora brasileira e as editoras japonesas. Depois de anos de relação, você construiu uma ponte. Ao comprar a JBC, a Companhia das Letras comprou essa ponte.
Fora a ponte, o que a mistura Companhia das Letras/JBC significa para as duas editoras? Isso a gente só responde daqui a um ou dois anos. Mas, no curto prazo, eu confiaria neste trecho da declaração oficial:
“A gestão da JBC continuará com as irmãs Shoji”, disse Luiz Schwarcz, CEO da Companhia, referindo-se respectivamente à diretora-geral Marina Shoji e à presidente da JBC, Luzia Shoji. “Primeiramente, porque a editora vai muito bem; depois, porque são elas que conhecem as aspirações dos leitores de mangá no Brasil. Nossa missão é dar o apoio na distribuição, comercialização e divulgação.”
Em termos de linha editorial, a mudança deve ser mínima. As linhas da Companhia não devem começar a publicar mangá, nem a JBC vai lançar graphic novels. A JBC deve continuar prestando o serviço que presta, apenas dentro do guarda-chuva da Companhia (ou Penguin/Bertelsmann no Brasil). E dando lucros à Companhia e ao guarda-chuva, é óbvio.
Há mudanças significativas que são coisas de entorno: sendo parte de um grupo maior, a JBC pode ganhar vantagens em negociações com gráfica e em distribuição. Também ganha capacidade de investimento para aumentar a linha, o ritmo de produção e quem sabe reimprimir aqueles dois volumes de Akira que esgotaram.
De novo: recursos não faltam para um grupo editorial gigante montar uma redação de profissionais experientes com mangá e começar a lançar mangá na semana que vem. Mas, mesmo você sendo um grupo editorial gigante, você não compra a licença do novo Jujutsu Kaisen, do novo Haikyu! ou do novo Attack on Titan de hoje pra amanhã. Você precisa da ponte.
O trabalho de Quintanilha concorria com outros quarenta e cinco quadrinhos na Seleção Oficial de onde saem seis troféus de Angoulême. Concorriam pesos pesados como Rutu Modan, Frederik Peeters, Émile Bravo (que levou o prêmio de série), Riad Sattouf, o último Blacksad. Esses já têm vendas e falatório; Quintanilha, não.
Ou melhor: mais ou menos. Quintanilha já havia ganhado um prêmio de quadrinho policial em Angoulême por Tungstênio, em 2015, e Márcia concorreu a outros prêmios na França, além de ser bem tratada pela imprensa de lá. Saiu, porém, por uma editora pequena, a Çà et Là, que não tem a potência de uma Casterman, Dupuis ou Dargaud.
O que acontece com a maioria dos Fauve d’Or é: mais leitores interessados, mais livrarias pedindo exemplares, mais sessões de autógrafos e, claro, uma vitaminada nas vendas. Quem sabe mais gente se interesse por outras obras de Quintanilha, que saíram quase integralmente no francês pela mesma Ça et Là.
Em 2020, quando entrevistei a agente Alessandra Sternfeld – que representa autores brasileiros como Marcelo D’Salete e outros no exterior –, ela comentou que o interesse das editoras estrangeiras pelo quadrinho brasileiro estava caindo, pois os prêmios de Quintanilha e D’Salete (respectivamente em Angoulême e no Eisner) já tinham ficado para trás.
O novo prêmio de Quintanilha devia ser tratado como uma grande oportunidade para o quadrinho brasileiro no exterior. Como é que esse paiseco, que só aparece no noticiário internacional por conta do presidente troglodita, consegue competir e se destacar em algo tão complicado e concorrido como quadrinhos? É a hora de cultivar entre os estrangeiros a ideia de que há outros guerreiros e guerreiras além do Quintanilha.
E a gente sabe que tem. Gidalti Jr., Bianca Pinheiro, Shiko, Ana Luiza Koehler, Rafael Coutinho, João Pinheiro, LoveLove6, André Kitagawa, Lourenço Mutarelli, Luciano Salles, Leandro Assis, Helô D’Angelo, Lu Cafaggi. Laerte nunca foi publicada fora do Brasil. O próprio Quintanilha não tem um álbum em inglês.
É hora de os estrangeiros saberem. Agentes, editores, os próprios autores deviam apostar no que o jornalista Rodrigo Casarin chamou de “conquista imensa para a arte brasileira”.
Coincidência ou não, já começou uma movimentação. Castanha do Pará, primeiro álbum de Gidalti Jr., apareceu em versão digital em inglês – Brazil Nut – na Amazon há poucos dias…
LUIZ GÊ NO OLIMPO
“Luiz Gê é um quadrinista do mesmo calibre desses caras que ocupam o Olimpo do quadrinho internacional, como Chris Ware e companhia.”
Já tinha ouvido Márcio Paixão Jr. comentar isso durante a Bienal de Quadrinhos de Curitiba, e pedi para ele confirmar. Ele não só repetiu, mas tem uma prova fresquinha na mão: Fronteira Híbrida, a antologia de trabalhos de Luiz Gê que acabou de sair pela MMArte, editora do próprio Márcio.
Pode parecer papo de editor querendo vender livro, mas Fronteira Híbrida realmente é a prova. Sobretudo porque é difícil encontrar outros trabalhos de Gê – muito ativo no quadrinho brasileiro dos anos 1980, o autor paulistano praticamente desapareceu do cenário para dedicar-se à universidade. Com o novo livro, com vários projetos e 71 anos, quer voltar.
“Nessa coisa da experimentação narrativa, particularmente, ainda ali no final dos anos 1980, na última edição da Chiclete com Banana”, diz Márcio Paixão Jr., “o Gê mandou uma história chamada ‘Viagem ao Centro do Universo’, que é uma coisa absolutamente radical, inovadora pro período. A paginação é totalmente diferente, assim como o modo como os quadrinhos eram dispostos, as possibilidades de leitura. A inventividade dele é um negócio gigantesco.”
Fronteira Híbrida reúne colaborações de Gê com músicos, ou de quadrinhos com música. Tem as parcerias com Arrigo Barnabé, com a HQ e toda identidade visual que Gê criou para os discos Clara Crocodilo e Tubarões Voadores (que sai em versão inédita, colorida para a nova coletânea).
Gê também foi diretor de arte de espetáculos de música e teatro, e adaptou este trabalho para entrar na coletânea como HQ. “Foram oito meses de trabalho obsessivo dele para fecharmos o livro”, diz Márcio.
DIAS
Lume foi um dos quadrinhos nacionais que me pegou de surpresa. Foi o primeiro de Luiza Nasser, a artista e professora de São Paulo, e trazia um cavaleiro andante numa história que parece simples, mas que se complica conforme esse cavaleiro começa a interagir com outros personagens nada medievais, com o leitor, com os próprios limites do livro. Material fino, de quem sabe explorar possibilidades da HQ.
Fiquei interessado assim que Nasser anunciou seu segundo projeto em quadrinhos, Dias. Assim como Lume – que, aliás, também virou o nome artístico de Nasser –, é uma publicação independente, pequenininha, que a autora só vende se você falar com ela no Instagram. E Nasser/Lume resolveu complicar mais a própria produção.
GRAMPEADO
Parece que ele furou as páginas ontem, mas já faz sete anos desde o primeiro Prêmio Grampo. A sétima edição do troféu, que já virou um dos mais importantes no mercado de HQ, vai revelar os premiados neste domingo, dia 3, às 14h30, simultaneamente nos sites Vitralizado e Balbúrdia.
Os três Grampos – ouro, prata e bronze – são escolhidos a partir dos 10 melhores lançamentos em quadrinhos no ano segundo os vinte membros do júri, que inclui críticos, jornalistas e pesquisadores da área, além de quadrinistas. Eu estou no júri desde a primeira edição, e você confere os outros envolvidos aqui.
Enquanto as primeiras edições privilegiaram quadrinho nacional – apesar de o júri poder votar em qualquer HQ publicada no Brasil, nacional ou estrangeira – as três últimas edições deram o Ouro ao quadrinho estrangeiro. Com o 2021 relativamente forte do quadrinho nacional, a situação deve mudar.
Após a revelação dos premiados, os organizadores Lielson Zeni, Maria Clara Carneiro e Ramon Vitral vão fazer uma live com Douglas Utescher, da Ugra Press, sobre os resultados. É amanhã, às 15h, neste link.
VIRANDO PÁGINAS
Garry Leach faleceu no último sábado, dia 26, aos 67 anos. O britânico é conhecido sobretudo pela sua colaboração com Alan Moore em Miracleman – ele desenhou as primeiras histórias na revitalização do clássico, que virou clássica por si só, há 40 anos.
Sua carreira começou no final dos anos 1970, na 2000 AD, e ele passou por várias séries no mercado britânico. Suas páginas detalhadas no chiaroscuro eram admiradas principalmente pelos conterrâneos. Minha HQ preferida de Leach é a primeira de Frequência Global, com Warren Ellis, de vinte anos atrás – uma pequena aulinha de narrativa e de gibi que sabe empolgar.
O mangá de Astro Boy, criação de Osamu Tezuka, começou a ser publicado pela Kobunsha em 3 de abril de 1952, há 70 anos. A série se tornaria um símbolo tanto da obra de Tezuka quanto de todo o quadrinho japonês, e continua ganhando versões em HQ e na animação.
Crise nas Infinitas Terras chegou ao Brasil em Os Novos Titãs n. 12, lançada em 27 de março de 1987, há 35 anos. A série de Marv Wolfman e George Pérez pulou por vários títulos DC/Abril durante quatro meses e mudou a cara da DC.
UMA CAPA
Do uruguaio Matías Bergara, em Step By Bloody Step n. 1. A premissa da série é: “Uma menina acorda. Ela não tem memórias, nem nome, nem fala. Não tem nada, fora um gigante.”
Com páginas totalmente mudas e viagens por reinos fantásticos – e muita homenagem a Moebius – é um dos lançamentos mais deslumbrantes deste ano em termos de arte. O roteiro é do inglês Si Spurrier e as cores, do brasileiro Mat Lopes.