Jozz não estava na sua casa em Jaú quando o rio que corta a cidade, também chamado Jaú, transbordou e engoliu o bairro. O quadrinista, ilustrador e professor morava a uma quadra do rio. Naquele momento estava em Bauru, a 55 km, planejando uma mudança. Enquanto ele estava fora, o rio entrou e tapou dois metros da casa. Só se via o telhado.
Foi no domingo, 30 de janeiro, há um mês e meio. Como já está virando chavão na crise climática, choveu mais em horas do que chove em um mês. A água suja do rio entrou nas casas e ficou dias. Várias famílias de Jaú e região perderam tudo. No caso de Jozz, foram todas as roupas, seu estúdio, computadores, originais, um estoque dos livros que ele mesmo editou e sua coleção de HQ. Naquele dia, restou só o que ele tinha na mochila que levou a Bauru.
Jozz é Jorge Otávio Zugliani. Tem 38 anos e é natural de Jaú, embora tenha morado bastante tempo fora da cidade. Ele começou a se destacar no quadrinho nacional com um álbum metalinguístico, O Circo de Lucca, baseado no seu TCC de Design Gráfico e publicado pela Devir em 2007. No ano seguinte ele ganhou o HQ Mix de Desenhista Revelação pelo Zine Royale. Esteve envolvido em várias HQs como desenhista e roteirista, em antologias e publicou muito independente.
Sua última publicação independente foi uma coletânea de ilustrações de sketchbook e textos sobre Jaú chamada A Cidade Submersa. Metade da tiragem ficou debaixo d’água, destruída. O título Cidade Submersa só não é uma coincidência mais macabra porque Jozz havia se inspirado, em parte, em outra enchente que atingiu sua casa em janeiro de 2020. Daquela vez, a água só tinha subido meio metro e esvaiu rápido.
Ele já queria ter saído da casa, onde morava com dois cachorros, muito antes da enchente deste ano. Mas a pandemia e outras questões pessoais atrapalharam o plano.
“No começo eu comparava a enchente a uma rasteira, que te pega de surpresa e te joga no chão. Mas eu já vinha tendo outros problemas, essa tragédia se alongou, gerou outras questões complexas e agora comparo a uma grande surra em quem já tava caído”, Jozz me contou num papo via twitter.
Páginas de "Cidades Inconscientes", de Pedro Cirne e Jozz
Na véspera da enchente, Jozz tinha escaneado e subido no Google Drive o lápis da última das 144 páginas de seu novo trabalho, que tem o título provisório Cidades Inconscientes. É uma colaboração com o roteirista Pedro Cirne (Púrpura) que passeia por várias culturas e crenças mágicas de povos brasileiros. “Por sorte está tudo salvo. Falta mais ou menos metade das cores pra terminar”, ele diz da coincidência boa. “Então, em breve, esse livro sai.”
Você confere um preview exclusivo de Cidades Inconscientes acima e logo abaixo.
Quanto a Cidade Submersa, seu trabalho de 2021 que teve meia tiragem submersa, “curiosamente, agora houve procura. Muitos me escreveram querendo um exemplar, por conta da história toda e também como uma forma de me ajudar. Pensei em reimprimir uma pequena tiragem quando tiver tempo. Alguns colegas dos quadrinhos têm sugerido que eu lance essa versão original em ebook e outros acham que eu deveria fazer uma segunda edição ampliada, contando essa história de agora. Estou pensando nisso tudo.”
Jozz está morando há uma semana na nova casa – em Bauru, onde já cursava doutorado e dava aulas. Faz seis semanas desde a enchente em Jaú. O apoio financeiro, além de ajudar ele e outros nestas semanas, também se transformou em uma geladeira e uma cama. “Consegui também um notebook e amigos da ilustração me deram uma mesa digitalizadora”, ele complementa.
Páginas de "Cidades Inconscientes", de Pedro Cirne e Jozz
“Nesse meio tempo, tive problemas para achar um lugar novo e definitivo por questões burocráticas de banco, declarações de renda, bolsa de doutorado que não se tributa e, enfim, toda aquela parte fiscal, que por mais que a gente se esforce na vida, nunca se resolve. E me faz lembrar quantos profissionais da nossa área, mesmo depois de anos de carreira, ainda atuam de forma precarizada”, ele comenta, dizendo que só quer ilustrar a pressão. “O sistema te abraça em um dia, mas no outro continua a te cobrar boletos sem dó.”
Ele lembra também do caso de Alessandro Garcia, do canal Ministério de Quadrinhos, que ocorreu duas semanas depois do seu. (Ainda dá para fazer doações ao Alessandro, aliás.) Apesar de os dois casos terem envolvido enchentes e mobilização para doações entre a comunidade brasileira de quadrinhos, Jozz diz que as perdas são incomparáveis.
“Não consigo parar de pensar que, apesar das dificuldades, é gritante como contatos e acessos nos colocam em lugares que não são permitidos à maioria dos brasileiros que passam por situações bem piores, diariamente. A rede de pessoas que se formou para ajudar em todos os pontos é maravilhosa e nos enche de esperança. Faz pensar que as pessoas são de fato boas e que é possível superar o capitalismo que nega políticas públicas e favorece práticas que levam a desastres climáticos como os que têm ocorrido. É sobretudo nisto que tenho pensado, pra ser bem sincero.”
O ÚLTIMO BALUARTE
O que Ed Cura diz acima curiosamente fez eco com outra fala que ouvi no mesmo dia, de uma entrevista com Mark Siegel, diretor editorial da First Second Books, no podcast Off-Panel.
A First Second foi fundada em 2006 como selo da MacMillan, um dos maiores grupos editoriais do mundo. Escrevi sobre a inauguração e os primeiros títulos na época. Foi um projeto do próprio Siegel, tentando convencer grandes editoras de que HQ era um mercado pouco explorado: o público pré-adolescente estava devorando mangá e não tinha nada do mesmo formato e variedade nos EUA. Estava certo.
Apesar de ter iniciado com uma linha editorial mais dispersa – material europeu importado, autores consagrados como Eddie Campbell – a First Second logo se fixou no público infanto-juvenil e em revelar vozes. O sucesso de O Chinês Americanode Gene Luen Yang (primeiro quadrinho finalista do National Book Award; em breve seriado na Disney+) e outros destaques de crítica, como Aquele Verão, de Mariko e Jillian Tamaki, definiram a rota. Hoje o selo tem linhas com quadrinhos sobre ciências, quadrinhos sobre política e outros de artistas que praticamente adotou para criar, como o próprio Gene Luen Yang, Box Brown, Jen Wang e Tillie Walden.
Os livros da First Second aparecem com frequência entre os mais vendidos e são figura fácil nas bibliotecas da América do Norte. O catálogo da editora ainda é pouco explorado no Brasil.
A Princesa e a Costureira, uma das produções da First Second lançadas no Brasil
Enfim, o que Siegel disse no podcast? É neste trecho, depois dos 40 minutos:
“Algumas batalhas – porque eram batalhas, a sensação era essa – lá de 2005 já foram vencidas há tempos. Só tem os últimos baluartes. Hoje você tem obras incríveis pra se ler nos quadrinhos, de sobra. E não são as bibliotecas, não são os professores, não são os livreiros… Os pais que são o último foco de resistência.”
Vi que Siegel anda dizendo isso há algum tempo – como nesta entrevista de dois anos atrás – e também que ele não desenvolve mais o assunto. Mas é interessante: um cara que tem uma longa experiência em analisar o mercado e que consulta muita gente ligada em promover a leitura entre o público que pode começar a ler quadrinhos diz que a última barreira para os gibis está onde? Em casa.
Talvez seja resquício da perseguição dos gibis dos anos 1950, que bateu forte na cabeça de bisavós, avós e pais que quadrinho é subliteratura. Talvez Siegel esteja se referindo aos pais que querem tirar livros de bibliotecas, algo forte nos EUA (e recorrente no Brasil, embora não gere o mesmo estardalhaço). Mas o problema, veja só, não é vender ou achar quem queira ler. O problema ainda é geracional.
“UM FANZINEZINHO COM UM NOMEZINHO PODRE”
“Muito obrigada. Estou pasma. É difícil eu acreditar que começou do nada, de um fanzinezinho lá nos anos 1980 com um nomezinho podre… e agora estou aqui, recebendo o prêmio mais importante da indústria dos quadrinhos.”
Foi o início do discurso de Julie Doucet, nova Grand Prix de Angoulême, na quarta-feira. Ela recebeu o troféu das mãos de Chris Ware – aqui tem o vídeo em que ele se enrola para entregar o prêmio -, Grand Prix do ano passado. Assim como Ware, Doucet terá uma exposição de retrospectiva de sua obra e fará um dos cartazes do Festival d’Angoulême do ano que vem – o 50º Festival, aliás.
Um comunicado do Festival à imprensa disse que Doucet não publica nenhuma HQ desde 1999, quando largou a cena porque se sentia oprimida pelo espaço dominado por homens. Ela voltou a produzir recentemente, porém, e sua graphic novel Time Zone J sai no mês que vem.
A Veneta publica o primeiro álbum de Doucet no Brasil, My New York Diary, este ano, com tradução de Cris Siqueira.
Angoulême premia os álbuns do ano neste final de semana. Vale muito a pena acompanhar a única cobertura brasileira do festival, com visitas às exposições, palestras e tudo mais no canal Eurocomics, em parceria com a Raio Laser.
ANGELA
Tal como o Festival d’Angoulême escolheu sua terceira mulher entre os quase cinquenta Grand Prix da história, o Troféu Angelo Agostini bateu outro recorde na 37ª edição, cujo resultado saiu esta semana. Sete das onze categorias premiaram autoras por trabalhos de 2020.
Mary Cagnin ganhou “Roteirista” por Bittersweet e Laura Athayde ganhou “Desenhista” por Aconteceu Comigo. Quarentena em Quadrinhos, de Rose Araújo, ganhou “Lançamento independente”. Fabi Marques, melhor “Colorista”, também está na equipe de Apagão: Fruto Proibido (com Raphael Fernandes e Abel), que ganhou em “Lançamento”. Anita Costa Prado foi uma das eleitas entre “Mestres do Quadrinho Nacional” e a revista Mina de HQ, editada por Gabriela Borges, ganhou o Prêmio Jayme Cortez.
UMA CAPA
De Sean Phillips para a edição brasileira de Fade Out, colaboração entre ele e Ed Brubaker. A série sai em volume completo (400 páginas!) pela Mino no mês que vem, com tradução de Dandara Palankof. A pré-venda já está rolando.