“É 1984. Estou num pub de Londres, vizinho a um evento de quadrinhos. Um amigo me diz que ouviu que a DC convidou Alan a revitalizar os personagens que acabaram de comprar da Charlton. Pergunto a Alan se esse finalmente é o projeto que podíamos fazer juntos. Ele acha que eu seria a pessoa certa.”
“É julho de 1985. Três edições prontas, nove pela frente. Estou em Heathrow. Conheço a família de Alan, que o trouxe ao aeroporto. O irmão de Alan é a cara dele se não tivesse cabelo nem barba. Alan e eu passamos seis horas no avião. Alan não para de falar. Entramos num táxi para Manhattan, onde passamos uma hora. Alan não para de falar. Fazemos check-in no hotel mais luxuoso que os dois já viram na vida. Os quartos são brancos do chão ao teto. O porteiro olha Alan de cima a baixo e diz que eles hospedam muito rock star.”
Os trechos são de Confabulation, livro que Dave Gibbons lançou em março. É uma autobiografia do co-autor de Watchmen, Martha Washington, The Originals: sangue nas ruas, Kingsman e mais.
Mas não é um livro de memórias comum, em ordem cronológica. É, como diz o subtítulo, uma “autobiografia anedótica”. E alfabética.
A vida de Gibbons está organizada por tópicos, como os projetos em que trabalhou, pessoas que conheceu e outros assuntos: Aliens; Asbury, Martin; Batman vs. Predador; Before Watchmen; Berger, Karen; Chaykin, Howard; Coincidências da Vida…
É bom para quem quer ir direto às partes picantes. Não fui o único que pulei várias páginas e fui até “Moore, Alan”, bem no meio do livro.
“Julho de 1986. Sete edições prontas, cinco pela frente. De San Diego, converso com Alan por telefone. É minha vez de ir à Comic-Con, mas os prazos estão curtos e eu estou esperando páginas de roteiro antes de a convenção começar. Ele pede desculpas: ainda não escreveu. Eu o absolvo da culpa e volto para o deque da piscina. Quando retorno à Inglaterra, o roteiro tem uma personagem curtindo o sol da Califórnia conversando com um amigo no telefone.”
Acho que é o maior verbete do livro: tem seis páginas, bem ilustradas. Gibbons adota aquela narração famosa do Dr. Manhattan, que faz vários saltos temporais, mas sempre em conjugação presente – embora, diferente do cara azul pelado, siga a ordem cronológica. É melhor para entender como essa amizade com “Moore, Alan” começou, teve vários pontos altos, Watchmen - que muitos consideram o melhor quadrinho da história dos quadrinhos - e acabou.
Moore, Gibbons e um bolo, 1986 (Fonte: divulgação)
“É novembro, meados dos anos noventa. Estou montando meu computador para apresentar um game na sala de estar do Alan, no meio de pilhas de jornais, pilhas de livros, cartas de tarô, parafernália de mago e o crânio de um lama tibetano. Não há cortinas na janela da sala e fico preocupado: quando sairmos de casa, alguém vai entrar e roubar o computador. Alan diz para eu não me preocupar – ele conhece todos os ladrões da região e o computador ia voltar em seguida.”
Moore e Gibbons se conheceram numa convenção inglesa em 1980. Gibbons chegou a ser convidado para desenhar Miracleman, que seria revitalizado por Moore, mas não conseguiu por causa de agenda. Antes de Watchmen, eles conseguiram colaborar em umas Choques Futuristas, aquelas histórias curtinhas na 2000AD, e na Super-clássica “Para o Homem que Tem Tudo”.
Watchmen foi monumental já na época em que saiu. Os dois viraram ídolos mundiais da HQ. Watchmen também foi motivo para Moore cortar relações com a DC, devido a uma disputa pelos direitos autorais; Gibbons não encrencou e continuou trabalhando com a editora. A amizade continuou apesar da divergência e as colaborações, mesmo que esporádicas, também.
“É primavera de 2000. Alan e eu estamos na casa dele de novo, na frente de uma câmera, falando com todo entusiasmo sobre a edição de aniversário de Watchmen e das action figures que a DC Comics quer lançar. A atmosfera está tomada por fumaça de cigarro e pelo glorioso sol. Semanas depois, vejo na internet que Alan mandou parar tudo, afrontado pelo jeito como a DC lidou com uma história que ele havia escrito para a namorada, Melinda Gebbie, desenhar. Não vamos mais autografar dez mil livros e receber quatro dólares por cada um. O carro novo que eu sonhava é engolido por si e deixa de existir.”
Os bottons de smileys que a DC distribuiu nos anos 1980, um dos pivôs da disputa de Moore e Gibbons com a editora
Já pensei e até já escrevi que achava Gibbons uma espécie de marionete de Moore em Watchmen. Que Moore teria escolhido Gibbons para o projeto porque queria um cara que desenhasse gibi de super-herói quase como o ideal platônico do gibi de super-herói – e Gibbons já vinha de uma carreira de Lanterna Verde e outras coisas super-genéricas. Moore precisaria de um cara assim para causar mais impacto quando desconstruísse o gibi de hominho.
Era e é injusto ver Gibbons como marionete. Moore é famoso pela meticulosidade nos roteiros, orientando composição dos quadros e detalhes da arte como se o desenhista fosse seu macaquinho amestrado. Gibbons, porém, não é um macaquinho.
O smiley, símbolo de Watchmen, foi introduzido pelo desenhista – assim como aquela gota de sangue cobrindo o smiley como um ponteiro de relógio (watch, entendeu?), que vira uma imagem temática da série. Os uniformes intencionalmente bregas são criações dele. O design das edições é de Gibbons. E ele desenhou cada linha das doze edições.
Há pouco tempo, o letreirista indiano Aditya Bidikar apontou um detalhe que pouquíssima gente percebe em Watchmen: os balões de fala. Quando a trama se passa nos anos 1980, os balões são redondos, clean, exatos. Quando há flashbacks aos anos 1940 ou 1950, os balões são “nuvados”: ganham gominhos, remetendo aos gibis mais fofos e inocentes daquela época.
Quem fez balões e letras de Watchmen? Dave Gibbons.
(John Higgins, colorista de Watchmen, também costuma ser esquecido como parte essencial da criação da HQ. Este artigo destaca o quanto ele contribuiu para o que Watchmen tem de melhor.)
Alan Moore, Kevin O’Neill, Dave Gibbons e outro bolo esfaqueado em 1985 ou 1986
“Complemento que, mesmo assim, sempre serei seu fã e que nossa relação rendeu as melhores experiências criativas da minha vida. Um deseja tudo de bom ao outro. Antes que o silêncio fique incômodo, os dois desligam.”
No verbete sobre Antes de Watchmen, Gibbons entra um pouco mais no que pensa sobre como a DC lidou com Watchmen, às vezes incomodando ele quase tanto quanto incomodou Moore. Ao final, diz que ficou “indiferente” a todo o projeto Antes de. E conclui: “Como eu esperava, a opinião dos leitores foi basicamente igual à minha.”
(Quanto à adaptação de Watchmen para a HBO, porém, ele só tem elogios.)
Em março, no evento de lançamento de Confabulation em Londres, o Bleeding Cool registrou a sessão de perguntas de fãs. Uma delas foi se havia algum impedimento legal para lançar uma coleção dos roteiros de Watchmen. Os roteiros são detalhadíssimos, com muito mais páginas do que o próprio quadrinho e datilografados por Moore em máquina de escrever. Algumas páginas já vieram a público e são uma amostra insana do nível de detalhe a que Moore chegou.
Gibbons respondeu que provavelmente não haveria impedimento e que publicar um livro dos roteiros podia ser uma ideia legal. Seu agente, também na plateia, pediu para ele complementar: “E quem tem esses roteiros de Watchmen?”
Segundo a matéria, “Dave Gibbons respondeu enfaticamente e com um sorriso: ‘EU’.”
BASEADO EM FATOS REAIS
Daniel Paiva diz que leu Cannabis: a ilegalização da maconha nos Estados Unidos, de Box Brown – um documentário em quadrinhos sobre a história da erva – e saiu dizendo aos amigos: “Poxa, alguém devia fazer uma versão brasileira dessa história.”
Resolveu fazer ele mesmo. Diamba: histórias do proibicionismo no Brasil sai em setembro pela editora Brasa. É a história de como a maconha atravessou continentes, chegou nas Américas, foi proibida no século 20 e de como, no Brasil, ela se liga fortemente à escravatura e ao racismo.
QUADRINHO É LIBERDADE
“O que eu sempre amei no gibi não é o gibi em si. É óbvio que tem gibis que eu adoro: sou grande fã de Carl Barks, de Jack Kirby, de Will Eisner. Mas o que vem ao caso não é isso. O que vem ao caso é que eu gosto do mundo do gibi: o mundo em que você pode ser empreendedor longe do mainstream, longe do esquema no qual as mil famílias que controlam os EUA obrigam todo mundo a dançar a música deles. Quando você vai trabalhar pra uma grande empresa, eles são donos até da sua bunda. No dia em que você nasce, é num hospital deles. Quando você toma as vitaminas na gravidez, elas vieram de uma empresa deles. Quando você compra um lápis para o colégio, é de uma empresa deles. Aí você vai trabalhar numa empresa deles, sua a camisa e eles te fazem abrir uma previdência no banco que investe na empresa deles e você é deles de cima a baixo.
Não quero que ninguém seja meu dono. Isso é o que interessa no mercado do gibi. É o último lugar onde a pessoa pode ser literalmente e realmente livre.”
De Chuck Rozanski, fundador e dono da Mile High Comics, uma das lojas de quadrinhos mais emblemáticas dos EUA – e provavelmente uma das maiores do mundo: a loja física é um galpão de quatro mil metros quadrados em Denver.
A declaração saiu em ma entrevista recente ao Comics Journal. É um tanto conspiratória e meio esquisita quando a maioria dos gibis que ele vende vêm da Marvel/Disney e da DC/Warnermedia/AT&T. Mas é bom quando alguém lembra que o quadrinho ainda pode ser o último bastião de liberdade do grande capital.
VIRANDO PÁGINAS
David Michelinie, criador de Venom, Carnificina, da versão Scott Lang do Homem-Formiga e do Máquina de Combate, completou 75 anos no último dia 6. Conhecido sobretudo por longas fases nas séries de Homem de Ferro e Homem-Aranha, ele começou carreira na DC nos anos 1970 e continua envolvido com os quadrinhos – sua última minissérie com Venom está sendo publicada na revista do personagem no Brasil neste momento. Michelinie veio à CCXP de 2018.
Hiromu Arakawa, a mangaká famosa por Fullmetal Alchemist, completou 50 anos no dia 8 de maio. Fullmetal foi sua primeira série e tomou dez anos de sua vida. Desde a conclusão, ela se envolveu com outras criações, como A Heroica Lenda de Arslan e Silver Spoon, ambas publicadas aqui pela JBC.
Stan Sakai completa 70 anos no próximo dia 25. Sua maior criação nos quadrinhos, Usagi Yojimbo, é o que o ocupa há quarenta anos – e ganhou uma retomada recente no Brasil com os encadernados da Hyperion Comics.
A Tropa Alfa ganhou a primeira edição de sua primeira série em 17 de maio de 1983, há 40 anos. É um dos trabalhos mais marcantes do roteirista e desenhista John Byrne, com experimentalismos que não se via no quadrinho de herói da época. O material foi reunido no final do ano passado em um Omnibus pela Panini.
300, o quadrinho de Frank Miller e Lynn Varley que virou o filme ainda mais famoso, ganhou sua primeira edição em 28 de maio de 1998, há 25 anos. O material chegou ao Brasil um ano depois como Os 300 de Esparta, pela Abril, foi reeditado e continua em catálogo pela Devir.
Mike Deodato Jr., um dos quadrinistas brasileiros de maior renome no exterior, completa 60 anos no próximo dia 23. Com passagens famosas por Mulher-Maravilha, Vingadores, Hulk, Homem-Aranha e um prêmio Eisner no ano passado por Nem Todo Robô, o paraibano foi anunciado recentemente como novo desenhista de Flash. (Lembro de quando escrevi sobre os 50 anos do Deodato.)
UMA PÁGINA
Ou quatro de Grégory Panaccione em La Petite Lumière, que saiu esta semana na França. O quadrinho é uma adaptação do livro do italiano Antonio Moresco. Dá pra ver mais neste preview.
Panaccione é um dos autores de Um oceano de amor, colaboração com Wilfred Lupano lançada no Brasil no ano passado pela Nemo. A Nemo também lançou, no mês passado, Vira-Lata Virador (com tradução de Renata Silveira), em que Panaccione adapta o livro de Daniel Pennac.