Alessandra Sternfeld tinha 24 anos, trabalhava numa agência literária em Milão e começou a andar com quadrinistas. Notou o que deixa qualquer um no mercado editorial pasmo: “Na literatura, até o autor mais desconhecido tem agente. Como é que quadrinista, até os famosos, não tem representação profissional?”
Ela fala principalmente de representar HQs e seus autores no exterior. Uma das funções do agente literário é conhecer, digamos, em qual editora francesa se encaixa o trabalho de seu cliente italiano. E entrar em contato, argumentar, negociar, vender.
Ela começou representando uma pequena editora de Padova, a Becco Giallo, especializada em quadrinho de não ficção. Conseguiu a representação de PowerPaola e seu Vírus Tropical. Descobriu Simon Hanselmann (Mau Caminho) no Tumblr, quando ele estava começando a publicar. Aí caiu na sua mão o quadrinho de um brasileiro: Cumbe, de Marcelo D'Salete.
A edição de "Cumbe" nos EUA, pela Fantagraphics.
Sternfeld é italiana. Depois de cinco anos em Nova York, ela voltou ao país natal por conta da pandemia e, de lá, coordena a AM-Book, uma agência literária especializada em quadrinhos e quadrinistas. Boa parte do que os autores brasileiros publicam no exterior – e boa parte do que se publica de bons autores estrangeiros no Brasil – passa pelas suas mãos e pela sua competência no trato com as editoras da Europa e dos EUA.
“Foram anos procurando alguém como a Alessandra”, diz Rogério de Campos, da editora Veneta, que lançou Cumbe por aqui. “Ela é uma pessoa chave para a onda de quadrinhos brasileiros no mercado internacional. Já devia ter ganhado um troféu HQ Mix.”
O último catálogo da AM-Book – “outono/2020”, como nas marcas de moda – destaca entre as novidades: Reanimator, de Juscelino Neco; A Alma que Caiu do Corpo, de André Toral; Jeremias: Pele, a Graphic MSP de Rafael Calça e Jefferson Costa; Labirinto, de Thiago Souto; e Saudade, de Phellip Willian e Melissa Garabeli.
O catálogo ainda traz os dois álbuns principais de Marcelo D’Salete – Cumbe saiu em sete idiomas e ganhou o Eisner de Melhor Edição Estrangeira nos EUA; Angola Janga já conta seis traduções –; Clean Break, de Felipe Nunes, que vai sair na Polônia; e Ye, de Guilherme Petreca, que saiu na França, na Polônia, na Espanha e nos EUA.
O primeiro livro de Liv Strömquist no Brasil.
Sternfeld cresceu mais com literatura do que com quadrinhos, mas lia Gipi, Andrea Pazienza e os Irmãos Hernandez. Aquele momento em que resolveu representar quadrinhos veio das notícias sobre o mercado: “Li que os dois únicos setores que estavam crescendo eram quadrinhos e culinária. Aí eu pensei: Como é que não tem mais ninguém nessa?”, comenta.
Folhear o catálogo da AM-Book mostra que Sternfeld e a agência têm gostos específicos. O estilo de ilustração é o último grito contemporâneo, os temas têm relevância social, mulheres estão em voga. É uma mistura do gosto dela com o gosto atual dos mercados em que trabalha.
“Gosto de obras que sejam importantes para a sociedade atual. Adoro um gibi bom de não ficção, como os da Liv Strömquist” – A Origem do Mundo já saiu aqui e A Rosa Mais Vermelha Desabrocha sai no ano que vem, ambos pela Quadrinhos na Cia. “Trabalho com autores e autoras que não pensam em si quando criam, mas sim que querem investigar o que é importante e inquietante na sociedade. Toda obra de arte tem que deixar o ego de lado, ter muita pesquisa e raciocínio.”
Esse tipo de quadrinho pode vir – e cada vez mais vem – de qualquer país. Ela representa autoras suecas como Strömquist, Anneli Furmark e Moa Romanova, australianos como Hanselmann, Tommi Parrish e Lee Lai. Ou a finlandesa Kati Nähri, que faz quadrinhos que agradariam Tim Burton, ou a venezuelana Laura Guarisco, que acabou de fazer uma graphic novel sobre fugir de seu país em crise. E tem os brasileiros, claro.
“Procuro qualidade de onde vier e tento pensar fora da caixinha. Tem mercados aí que são ótimos porque oferecem bolsas de tradução de quadrinhos, o que ajuda na hora de convencer editoras estrangeiras a comprar.”
O Brasil ajuda neste sentido. Como a AM-Book sempre usa de argumento, a Biblioteca Nacional financia traduções de obras brasileiras no exterior, inclusive quadrinhos.
Uma das novas edições de Breccia na França.
Ela não fica só no contemporâneo. “Há quatro anos, eu estava numa ligação com Gary Groth, o publisher da Fantagraphics. Eu estava na rua, fazia um frio de rachar e minhas mãos doíam pra segurar o celular. Ele me contou que tinha acabado de conseguir os direitos de Breccia no mundo inteiro. Quase tive um AVC. E meu frio passou.”
Sternfeld convenceu Groth a deixá-la intermediar o material de Alberto Breccia (1919-1993). Ajudou o fato de ela falar espanhol. A avalanche de lançamentos de Breccia no Brasil – que comentei em coluna anterior – tem a ver com o trabalho da AM-Book. Na verdade, a agência está fazendo isso no mundo inteiro: saíram novas edições de Breccia na França, na Alemanha, na Itália, na Noruega, Portugal, Croácia, Sérvia, Polônia, República Tcheca e EUA nos últimos três anos.
“Também fiquei íntima dos filhos e netos de Breccia. Fui a um casamento em Buenos Aires, me convidaram para almoçar na casa deles e me contaram várias histórias de Alberto”, Sternfeld conta. “Também gosto de trabalhar com um de seus principais parceiros nos quadrinhos, no espólio de Carlos Trillo. A mulher e a advogada dele são muito inteligentes, e negociar com as duas é um prazer.”
Sternfeld também representa clássicos dos seus conterrâneos, como Massimo Mattioli (1943-2019), de Squeak the Mouse, e Andrea Pazienza (1956-1988), de Os Últimos Dias de Pompeo. Não é por acaso que o material deles voltou a aparecer no Brasil.
Uma versão da capa de "Saudade" em inglês.
Os clientes chegam de várias maneiras. Ela conta que, quando perguntou a Simon Hanselmann se podia agenciá-lo, o criador de Megg, Mogg e Coruja respondeu com o descolê dos personagens: “Yeah, whatever”. Hanselmann agora é publicado na França, Itália, Espanha, Polônia, Rússia, Suécia, Argentina, Colômbia, Dinamarca, Portugal e Brasil.
Ela passou seis meses tentando convencer a editora da sueca Liv Strömquist. Tommi Parrish veio de uma recomendação. A canadense Nina Bunjevac (Bezimena) foi atrás dela dentro de uma galeria. “E me disse uma coisa tipo: ‘Geralmente não gosto de agentes, mas você é diferente.’”
No momento, Sternfeld diz que não sobra muito tempo para correr atrás de novidades, mas tem uma rede de contatos e três colaboradoras – inclusive uma colega que fala português.
Phellip Willian e Melissa Garabeli, o casal autor de Saudade, enviou à AM-Book um PDF do livro e um release com sinopse, capa, imagens conceituais, informações de desempenho do livro em vendas e de prêmios no Brasil. Eles ganharam o Troféu HQ Mix 2019 de “Novo Talento Desenhista” e o Prêmio Ângelo Agostini de “Melhor Lançamento Independente”. Ainda não tinham o livro traduzido, mas estavam no processo de transformá-lo em Missing You.
“Tivemos resposta alguns dias depois”, diz Phellip. “A agência descreveu como funcionava o agenciamento, porcentagem etc. e começamos negociação. Assinamos há pouco tempo, por isso não tivemos muitas ofertas. Uma editora inglesa já se interessou, mas a agência está estudando propostas.”
Wagner Willian (Silvestre) foi atrás da agente por recomendação da editora Veneta. Foi a AM-Book que agenciou seu independente O Maestro, o Cuco e a Lenda com a gigante franco-belga Casterman. A agência destaca no último catálogo uma HQ infantil do autor potiguar que ainda nem saiu no Brasil: Onça-Me, ou Hear Me Roar, sobre uma menina pantera e relacionamentos abusivos.
“Ela já vendeu até umas pinturas minhas”, diz Wagner. “Tenho obras espalhadas em Veneza graças à Alessandra.”
"Onça-Me", de Wagner Willian, na versão em inglês
“Nos anos 80, alguém falou que os jovens músicos brasileiros precisavam compreender que o mercado mundial não estava interessado em bandas de rock do Brasil”, diz Rogério de Campos, da Veneta. “Isso já tinha muito nos Estados Unidos e Inglaterra. O mercado queria saber de música brasileira. Mais ou menos isso é o que acontece agora. O interesse é no quadrinho mais brasileiro, que fale de Brasil, que ofereça uma visão brasileira.”
Campos e Sternfeld concordam nisso e em vários assuntos. “Ainda lembro quando o Rogério me convidou pra representar os quadrinhos da Veneta. Eu tinha 25 anos, fiquei lisonjeada, pensei: ‘Sério, eu?’”, ela conta. “E aí aconteceu essa coisa maravilhosa, quando vendemos Cumbe para a Fantagraphics e ela acabou ganhando o Eisner. Foi um dos melhores dias da minha vida.”
O fervor com o quadrinho brasileiro baixou, na análise da agente. “Os quadrinhos daí tiveram anos bons quando os álbuns de Quintanilha e D’Salete alcançaram sucesso internacional. Abriram caminho para tradução de outros autores. No momento, não tenho visto material novo do Brasil com grande potencial no exterior… mas nunca se sabe. Estou animada com o livro de memórias da Laerte.”
Um nome recente que a deixou empolgada: Melek Zertal, argelina de 24 anos. “O trabalho dela é preciso em decodificar os relacionamentos modernos”, diz Sternfeld.
“Minha missão é levar ao mundo o que há de melhor, que transforme os leitores em pessoas melhores. Se eu tivesse nessa pelo dinheiro, seria uma louca. O que me interessa é a qualidade… e a grana, assim que você se firma no mercado como uma pessoa de bom gosto e perspectiva.”
A EDITORA-CHEFA
Outra mulher alcançou um cargo importante no quadrinho mundial esta semana: Marie Javins, anunciada pela DC Comics como nova editora-chefe. Ou editora-chefa.
Na verdade, ela já vinha dividindo o cargo com a colega Michele Wells desde agosto, num período de transição da DC e de passaralho na Warner. Wells foi demitida.
Javins, de 54 anos, está nos quadrinhos desde o final dos anos 1980, quando trabalhou de colorista e depois de editora na Marvel. Deixou HQs de lado quando a Marvel entrou em falência, deu duas voltas ao mundo (literalmente), editou gibis no Egito e reapareceu na DC há seis anos.
O anúncio foi recebido com muitos elogios de autores que trabalharam com Javins nesses trinta anos. Ela é a segunda editora-chefe que a DC teve em mais de oitenta anos: até agora, só Jenette Kahn havia ocupado o cargo, de 1989 a 2002, depois de descer do cargo de Publisher.
MENOS FILMES FAZ GIBI VENDER MAIS?
No Bleeding Cool, o depoimento de um dono de comic shop do Iowa, que diz que teve aumento nas vendas durante a pandemia:
Infelizmente, acho que um dos motivos para essa alta nas vendas é a falta de filmes. Não ter filme novo da Marvel nem da DC, nem nada forte no cinema, ajuda mais os gibis do que se tivesse filme de gibi saindo. Ou seja: Aquaman, Vingadores e os outros não deram certo no sentido de trazer mais público pros gibis, nem pros gibis de Aquaman e Vingadores. Como os cinemas estão com menos público do que tinham, o público tem mais grana e tempo para gastar em outras coisas, tipo gibi. Dá pra ler gibi na segurança da sua casa, sem interagir com outros.
É só a percepção de um lojista, não entenda como lei. Segundo a ICV2, que analisa os números do mercado, pelo menos 93 lojas fecharam as portas nos EUA este ano, em grande parte devido à pandemia. O mercado estava em crescimento há anos e teve uma queda brusca.
A queda só não aconteceu, como já foi tratado em outa coluna, no quadrinho para crianças. “Pais demonstraram uma tendência a gastar muito mais na educação e no entretenimento infantil, até mais do que necessidades básicas, em situações de emergência. Editoras e livrarias saíram ganhando”, diz um informe do jornalista Rob Salkowitz.
QUEM CONSTRUIU A PRAIA
De uma entrevista com Riad Sattouf, o francês autor da série O Árabe do Futuro, ao Le Monde:
Comecei a inventar histórias lendo Tintim… Eu pensava que os álbuns eram tipo a areia e a chuva, coisas que sempre existiram. Depois minha mãe me ensinou francês e comecei a decifrar os balões. Um dia eu li na capa: “Hergé”. Perguntei pra mãe: “O que é isso, ‘Hergé’?” Ela me explicou. Quando eu descobri que um ser humano podia fazer uma coisa assim, minha relação com a realidade mudou. Foi como se tivessem me dito: ‘Essa praia que você tanto adora foi construída por uma pessoa.’”
UMA PÁGINA
De Laura Dean Vive Terminando Comigo, por Rosemary Valero-O’Connell, com roteiro de Mariko Tamaki. O álbum levou três Eisner este ano e sai aqui no mês que vem pela Intrínseca, com tradução de Rayssa Galvão.
A protagonista é Freddy, que namora uma das meninas mais populares do colégio, Laura Dean – quando Laura Dean está a fim, pois ela já encerrou e retomou o namoro trocentas vezes.
Se os três Eisner ainda não convencem, as páginas em cinza e rosa são das mais bonitas que vão sair aqui este ano.
UMA CAPA
De A Odisseia de Hakim 2: Da Turquia à Grécia, de Fabien Toulmé. Sai semana que vem pela Nemo, com tradução de Fernando Scheibe.
É daquelas capas que impacta depois que você lê a HQ. A história do refugiado sírio atinge o momento de vai ou racha: atravessar o Mediterrâneo num bote improvisado, mais carregado de refugiados do que devia, com um filho de colo. É de arrancar as unhas a dentadas.
(o)
Sobre a coluna
Toda sexta-feira, virando a página da semana nos quadrinhos. O que aconteceu de mais importante nos universos das HQs nos últimos dias, as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.
Sobre o autor
Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato.