A Hyperion Comics é a última novidade do mercado de quadrinhos brasileiro. Capitaneada por Levi Trindade, ex-editor-líder da Panini Brasil, a nova editora já anunciou lançamentos interessantes, mas chama atenção mesmo pela estratégia de distribuição e venda.
Levi fez uma peregrinação por canais de quadrinhos nos últimos dias – e continua: veja a agenda aqui – para explicar o modelo: vendas exclusivamente em 70 lojas de quadrinhos e bancas, além de 24 representantes – ou “vendedores Avon” – espalhados pelo país.
MAIS QUADRINHOS, MAIS QUADRINHOS, MAIS QUADRINHOS
Barnstormers, de Scott Snyder e Tula Lotay
A quantidade de editoras que vem surgindo no Brasil é reflexo do que está acontecendo lá fora. Em três semanas, foram anunciados dois projetos grandes nos EUA para impulsionar quadrinhos – com a grana infinita do setor de tecnologia.
O primeiro foi a parceria entre Scott Snyder e Comixology, em que o escritor de DC Metal e Vampiro Americano anunciou nada menos que oito títulos em parceria com outros nomes grandões nos desenhos: Greg Capullo, Rafael Albuquerque, Jock, Tula Lotay, Francesco Francavilla, Francis Manapul, Dan Panosian e Jamal Igle.
O segundo foi a linha de quadrinhos da Substack, plataforma de newsletters que anda financiando web-personalidades nos EUA. O escritor Nick Spencer trocou a Marvel e Homem-Aranha pelo comando da linha e saiu contratando: Jonathan Hickman, Saladin Ahmed, Chip Zdarsky e James Tynion IV anunciaram projetos essa semana. Cada um vai lançar uma HQ (ou mais) pela plataforma, acompanhadas de newsletters explicando o processo e interagindo com os leitores.
Scott Snyder também está nessa, com uma newsletter específica para ensinar aspirantes a roteirista de HQ. James Tynion IV, autor mais badalado do momento – recém-ganhador do Eisner de melhor escritor – prometeu contar podres da DC, onde acabou de largar a série do Batman.
Blue Book, de James Tynion IV e Michael Avon Oeming
Tanto o material da Comixology quando da Substack sai primeiro em digital, mas deve virar impresso em seguida. Além disso, nos dois casos, os direitos são dos autores – se algum desses quadrinhos virar seriado de TV, filme ou videogame, a grana é de quem criou e não das editoras/plataformas.
Claro que a meta é essa: fazendinhas de conteúdo, como já expliquei na coluna. Produzir quadrinho é um dos jeitos mais baratos de apresentar projetos aos estúdios, por combinar história, visual, velocidade de produção e de resposta do público. Todo autor gostaria de ser o Mark Millar e se vender por 50 milhões pra Netflix.
“Por conta do streaming, tem uma demanda constante de material bom e a necessidade imensa de produto”, Scott Snyder disse em entrevista ao Comics Beat. “Você vai ver muito estúdio reservando material, incluindo do quadrinho autoral. Acho que cresceu a percepção, entre os autores novos, que existe potencial e empolgação em fazer o que for seu e ver se pega. Tem mais oportunidades também.”
Da parte de quem está investindo, a Comixology (que é da Amazon) e o Substack, a meta é mais contas nas plataformas do que venda de gibi. Além disso, ao pagar para os nomes grandes e conhecidos abrirem o caminho, elas esperam que nomes médios e inéditos venham por livre e espontânea vontade. Daqui a uns dois anos a gente sabe o resultado.
COMO MCFARLANE VENDE MEIO MILHÃO DE GIBIS
Enquanto o digital vira caminho para vários, a maioria das editoras brasileiras continua insistindo no impresso. Todd McFarlane também. Esta semana ele trombeteou que King Spawn n. 1 – um dos lançamentos do Spawnverso – é “o maior lançamento de uma mensal de super-herói na indústria de quadrinhos nos últimos 25 anos”, com venda de 497 mil exemplares.
O número é mesmo impressionante, pois qualquer editora dos EUA solta foguetes quando vende cem mil. E talvez seja um pouquinho inflado – a única fonte é o próprio McFarlane –, mas provavelmente não tanto. Tem outra maracutaia aí no meio, que é a das “capas alternativas”.
Uma prévia da capa alternativa autografada-numerada-rara de King Spawn n. 1
Você sabe que é comum nos EUA lançar revistas com várias opções de capa. King Spawn n.1 tem nove “variantes”. Uma delas, desenhada pelo próprio McFarlane, é a “1:250 signed copy retailer incentive”. O “1: 250” quer dizer que a loja de quadrinhos só vai receber um exemplar com esta capa para cada 250 exemplares de King Spawn n. 1 que encomendar com outras capas.
Ou seja: vai ser uma edição rara. Mesmo que o preço de capa seja US$ 5,99, a loja pode vendar a edição da capa rara pelo preço que quiser. Já tem gente vendendo no eBay por mais de US$ 1200, antes do lançamento. McFarlane, em comunicado aos lojistas, disse que as capas vão ser numeradas e autografadas – e que nunca mais vai autografá-las pra ninguém.
É bom lembrar que, no direct market dos EUA, as lojas de quadrinhos ficam com o encalhe. Se a loja pediu 250 (ou 500, ou 1000, ou 10000) King Spawn n. 1 para conseguir uma capa rara (ou 2, ou 4, ou 40), ela pagou por todos e que lute para vender esse monte de Spawn entre os fregueses. Ou que fique com um monte de caixas no depósito. Geralmente ficam com caixas.
PROJETOS 1000%
Lampião, do Estúido IndieVisivel
Por falar em números, vêm chamando atenção os projetos de quadrinhos no Catarse que superam os 1000% da meta, ou seja, dez vezes o valor para a HQ “acontecer”. É um joguinho esperto com as regras da plataforma e com a percepção de quem está pensando em apoiar.
Lampião, o mangá sobre o famoso cangaceiro criado pela IndieVisivel Press (os autores são Heitor Amatsu e Carlo), fechou sua campanha em 1568% da meta. O volume 1 do Krazy Kat de George Herriman, pela editora Skript, passou recentemente dos 1000%. O Mundo de Yang: Dois Cortes, de Orlandeli, está em (pasme) 26.620%.
Nos três projetos, as metas declaradas não são realistas no sentido de pagar impressão, envio e outros custos de produção de cada HQ. Não pagam. Se tivesse apoio de 100% em Krazy Kat vol. 1 – ou seja, R$ 7500 – a editora Skript teria pouco mais que o preço de licença do material (mesmo que Krazy Kat esteja em domínio público, a edição de base é licenciada da Fantagraphics). Com 100% de sua meta de R$ 35, Orlandeli venderia um exemplar de Mundo de Yang.
Krazy Kat volume 1
Mesmo não sendo realistas, as metas baixas jogam com a percepção: quando o projeto atinge os 100% rapidamente, mais interessados confiam e apoiam. A porcentagem alta também vira motivo de comemoração nas redes, o que rende mais divulgação. O fato de os projetos estarem na categoria Flex, o que significa que acontecem mesmo se não atingirem os 100%, tende a ser ignorado.
A Editora Skript, por exemplo, já declarou que usa esta estratégia conscientemente. “Com a meta baixa, a gente alcança o 100% muito rápido e dá a segurança necessária para as pessoas que não estão acostumadas com a plataforma a apoiarem o projeto, tendo a certeza de que ele será publicado”, o editor Douglas Freitas me disse em abril. Dois projetos recentes da editora, o Popeye de Lelis e Ozanam e Fábulas do Velho Mundo de Sergio Toppi, fecharam em respectivamente 1738% (R$ 130 mil de arrecadação) e 1493% (R$ 112 mil).
Os valores totais arrecadados nesse tipo de projeto, felizmente, parecem realistas do ponto de vista de produção – pagam os custos e dão lucro. O Catarse, aliás, dá mais destaque ao valor total arrecadado em cada projeto do que às porcentagens em relação à meta, além de também deixar à vista o número de apoiadores.
QUANTO CUSTA CALAR A BOCA
A pressão de quadrinistas para conseguir uma porcentagem dos megalucros das editoras – mais especificamente de quem se vê prejudicado pela Marvel/Disney – continua. O último capítulo, que comentei no mês passado, tinha sido uma matéria da Hollywood Reporter que descobriu a prática do shut-up money, ou “cachê calaboca”, que a Marvel oferece para se fazer de amiguinha de um autor quando um personagem criado por este é usado no cinema ou na TV.
O jornalista Sam Thielman publicou uma matéria muito parecida no Guardian da segunda-feira. A única novidade é que ele descobriu o valor do “cachê calaboca”: US$ 5.000 (R$ 26 mil) geralmente acompanhados de ingressos para a première no caso de filme.
Ed Brubaker, um dos pivôs da pressão, já disse que recusou o cachê porque preferiu manter-se no direito (moral) de continuar reclamando em público. E reclama.
Uma das consequências da matéria do Guardian foi a declaração da “Força-Tarefa #DisneyMustPay”, uma associação de sindicatos que está cobrando tudo que a Disney deixou de pagar a escritores, de que também vai incluir roteiristas e desenhistas de HQ nas demandas.
A pressão cresce.
CUIDADO COM O OMNIBUS
A Panini anunciou a maior de suas “edições ônibus” até agora: Patrulha do Destino por Grant Morrison, com 1288 páginas. Segundo a Amazon americana, a edição original tem 1200 páginas e pesa 3,7 quilos.
Avisei no ano passado e aviso de novo: esteja com a musculação em dia e cuidado com o jeito para manusear seus Omnibus. Você pode parar no hospital.
O recorde de tamanho pode ser superado em breve. A edição da Patrulha Morrison pode indicar que vem por aí o Omnibus da LJA de Morrison (1504 páginas, 3,6kg), de Os Invisíveis (1536 páginas, 3,8kg), quem sabe de Y: O Último Homem (1440 páginas, 3,9kg). Em todos os casos: cuidado.
CLÁSSICO À DERIVA
Não é Omnibus, mas cabe na definição. A editora Veneta colocou em pré-venda um clássico genuíno do mangá: a autobiografia de Yoshihiro Tatsumi, Vida à Deriva, em dois volumes que somam 920 páginas (e peso estimado de 1,65kg). Dá para comprar os dois separadamente ou juntos numa caixa.
Tatsumi (1935-2015) foi a figura responsável por puxar o gekigá, ou mangá adulto, no Japão pós-Segunda Guerra. Numa autobiografia mal disfarçada, Vida à Deriva conta como ele e o irmão brigaram no mercado alternativo e conseguiram influenciar até quem os influenciava, o pai-sol Osamu Tezuka. É uma HQ sobre o amor por fazer HQ e o suor de fazer HQ.
Até agora, a única publicação de Tatsumi no Brasil era Mulheres, coleção de contos que a Zarabatana publicou em 2007. Vida à Deriva sai aqui treze anos depois do original, com tradução e muitas notas de Drik Sada. Nessa década e pouco, o tijolão ganhou o prêmio Tezuka, dois troféus no Eisner e um em Angoulême. É daqueles clássicos que você pode ter segurança que é clássico.
VIRANDO PÁGINAS
Ontem, dia 12, completaram-se dez anos da morte de Francisco Solano López, eterno desenhista d'O Eternauta (colaboração com Héctor Germán Oesterheld). O desenhista trabalhou por mais de cinquenta anos entre Argentina e Europa. Uma de suas obras mais fortes, Evaristo (com Ricardo Barreiro), saiu este ano no Brasil.
Secret Wars começou a sair em minissérie no Brasil em 12 de agosto de 1986, há 35 anos – com o título em inglês. Atropelando a cronologia que a Editora Abril seguia com as séries da Marvel, a saga chegou pouco depois dos EUA para acompanhar o lançamento de uma linha de bonecos da Gulliver – e ficou famosa por cortes e alterações na história, exclusivas da edição brasileira. O material já foi republicado várias vezes no Brasil, com o nome Guerras Secretas, sem os cortes.
O primeiro volume de Maus, “A História de um Sobrevivente”, de Art Spiegelman, saiu em livro em 12 ou 19 de agosto de 1986, também há 35 anos. Os capítulos já haviam sido publicados na revista Raw, e a história só ia se concluir cinco anos depois no Volume 2 – e valer um Prêmio Pulitzer ao autor.
Em 1996, há 25 anos, exatamente no dia de hoje, saía a décima e última edição de From Hell, de Alan Moore e Eddie Campbell. Os dois levaram pelo menos oito anos na produção. Depois o material teve vários acréscimos, virou filme e ganhou outras versões (inclusive uma recente, colorida), além de ter sido publicada duas vezes no Brasil. A edição mais recente é da Veneta, com tradução de Jotapê Martins.
UMA CAPA
De Sebástian Fiumara, em Wonder Woman n. 777.