Esta semana uma pessoa me perguntou: o que vai ser da minha coleção de quadrinhos depois que eu morrer? Pergunta pesada e mórbida, sim, mas uma das coisas em que a gente tem que pensar quando sabe que já passou da metade da vida.
A pergunta veio acompanhada do link para uma matéria do Bleeding Cool que pergunta a mesma coisa, dando o exemplo de uma grande coleção que uma loja dos EUA acabou de adquirir. Veio de um cliente de longa data, agora hospitalizado (e às portas da morte, o relato leva a crer), com uma esposa idosa incapaz de lidar com as caixas e mais caixas. O colecionador tentou, mas não conseguiu vender o material antes da doença. A loja admite que comprou por compaixão.
Parte do acervo doado à Biblioteca Pública do Estado em Porto Alegre. Foto: Divulgação Gibiteca BPE
Em junho, no discurso de agradecimento pelo Grand Prix do Festival de Angoulême, Chris Ware disse que “o que escritores, artistas e cartunistas fazem no cavalete ou na escrivaninha é a mesma coisa que todo mundo faz. O que muda é a pilha de porqueira que a gente deixa para os filhos jogarem fora, que é maior.” Colecionadores de quadrinhos – ou acumuladores de quadrinhos, caso você ache “colecionador” muito chique – temos o mesmo problema.
Já larguei da ideia de vender o que tenho porque, primeiro, sou péssimo vendedor e, segundo, porque nunca vão atingir o valor daquela Superaventuras Marvel que eu guardo desde 1987, um valor que só existe na minha memória e no meu coração. Volto ao primeiro ponto: sou péssimo vendedor. E não vou passar esse encargo pra família.
Queria doar, ainda em vida, boa parte do que eu tenho. Doar para um lugar onde eu soubesse que o material seria lido pelo maior número de pessoas e minimamente conservado, sem nenhuma pretensão comercial. Já me responderam que isso é um sonho maluco.
Mas eu sou otimista. E tem algumas iniciativas que alimentam o otimismo, como a Gibiteca da Biblioteca Pública do Rio Grande do Sul, que vai ser inaugurada hoje em Porto Alegre. É uma iniciativa da própria instituição, com apoio decisivo do quadrinista Guilherme Smee (Dobras, Mandinga). Smee fez na sua cidade o que eu queria fazer na minha: doou um pedaço da sua coleção para fundar uma gibiteca.
Parte do acervo doado à Biblioteca Pública do Estado em Porto Alegre. Foto: Divulgação Gibiteca BPE
“Minha mãe faleceu em 2019 e em 2020 perdi um casal de tios para a Covid”, Smee me contou em entrevista. “Essas três pessoas, junto a meu pai que faleceu em 2006, sempre foram extremamente incentivadoras da minha leitura, principalmente de gibis. Essas perdas me levaram a pensar na brevidade da vida e no propósito de fazer uma coleção e acumular tantos quadrinhos.”
Ele diz que não teve grande dificuldade com desapego. “Já tive de lidar com desapego muitas vezes por falta de dinheiro ou de espaço para comprar novos gibis. Aprendi pelas dificuldades que o que vale mais é a experiência da leitura, o conforto que ela nos dá e a força que nos confere para continuar vivendo – mais do que a posse desses objetos, que muitas vezes vamos ler só uma ou duas vezes.”
Assim como eu, ele não via valor em vender o material. A partir daí, conseguiu contato com a Biblioteca Pública, que já vinha desenvolvendo a ideia de uma Gibiteca desde 2015 e prontamente aceitou a doação. O espaço devia ter sido inaugurado no ano passado, mas o processo atrasou por causa da pandemia.
A ideia é que a Gibiteca receba doações de qualquer interessado ou interessada. O material que o próprio Smee doou para começar o acervo está por volta de 1500 gibis, bem variados. Tem desde mensais DC e Marvel da Panini até mangás, graphic novels, quadrinhos de autores nacionais e edições importadas – como uma edição francesa de Corto Maltese.
Parte do acervo doado à Biblioteca Pública do Estado em Porto Alegre. Foto: Divulgação Gibiteca BPE
A Gibiteca também estreia com parte da coleção de outro quadrinista gaúcho, Adri A. – o autor dos melhores quadrinhos contemporâneos do Homem-Aranha em Cara-Unicórnio. Ele teve algumas questões de desapego da coleção – em torno de mil gibis, a maioria de super-heróis, das editoras Abril e Panini –, mas foi vencido pela realidade.
“Tive dificuldade porque eu vinha há muito tempo trabalhando isso em mim e decidindo qual seria a melhor forma de me desfazer dos gibis”, ele me contou em conversa pelo Instagram. “Eu não queria jogar fora, não tinha como catalogar tudo pra vender, tava me vendo obrigado a me desapegar por questões de espaço físico.”
Ele descobriu a respeito a abertura da Gibiteca em um contato com Smee. “Saí feliz, porque mais pessoas vão poder ter acesso a essa coleção que tava guardada há um tempão.”
Parte do acervo doado à Biblioteca Pública do Estado em Porto Alegre. Foto: Divulgação Gibiteca BPE
“O quadrinho é a porta de entrada para a leitura”, diz a diretora da Biblioteca Pública do Estado, Morgana Marcon. Mesmo que pareça estar fazendo a ligação tradicional entre quadrinhos e infância, ela ressalta que a leitura começa em qualquer idade – e que a Biblioteca é procurada sobretudo pelo público jovem e adulto.
“Não vamos aceitar doação de quadrinhos infantis, como Turma da Mônica”, ela diz. “Turma da Mônica Jovem, sim, pois tem a ver com nosso público. Aceitamos inclusive quadrinho com conotação sexual ou similares, mesmo que ele venha a ter um acesso reservado.”
A diretora diz que o material será catalogado aos poucos e a relação estará disponível no Catálogo Online da Biblioteca. Haverá todos cuidados de preservação que se tem com o restante do acervo (a Biblioteca tem um setor de restauro) e não haverá empréstimos. Quem quiser ler gibis da Gibiteca só poderá fazer no local.
Por enquanto os horários não são os mais abrangentes: a Biblioteca Pública está funcionando de segunda a sexta-feira das 10h às 17h. A partir de 16 de novembro, o horário se estende até as 19h. Ainda não há previsão de quando o atendimento retorna aos sábados.
Parte do acervo doado à Biblioteca Pública do Estado em Porto Alegre. Foto: Divulgação Gibiteca BPE
“É importante a abertura de horizontes e o retrato do mundo que as HQs nos permitem”, diz Guilherme Smee. “Viajar pelas histórias e imagens vale mais do que ficar catalogando o que você tem em casa. Queria um destino para meus quadrinhos que pudesse trazer para alguém tanta alegria e superação quanto os gibis já me ofereceram um dia.”
Ele diz que, mesmo depois da doação, ainda tem uns 7 mil gibis espalhados pela casa. “Espero que no dia que eu deixar esse mundo, o resto dessa coleção faça parte do acervo de uma gibiteca.”
A Gibiteca tem inauguração oficial hoje com um bate-papo entre a quadrinista Ana Luiza Koehler (Beco do Rosário) e o editor Fabiano Denardin (Mythos/Panini) sobre “A Importância da Leitura de Quadrinhos”, dentro da própria Biblioteca, a partir das 19h. Smee será o mediador.
Quem tiver interesse em fazer doações à Biblioteca Pública do Estado deve entrar em contato através do website da instituição.
A dissertação da pesquisadora Dani Marino, que tratou da importância das gibitecas para a leitura, levantou 16 espaços como estes em atividade no Brasil até 2018. É possível que atualmente haja mais, quem sabe menos. Já pensou em começar a gibiteca da sua cidade?
ELE LEU TUDO
Estou justamente lendo um livro sobre ler gibi. Saiu no mês passado All of the Marvels, livro de Douglas Wolk que resume sua empreitada de ler os 27 mil gibis que a Marvel Comics publicou de 1961 pra cá.
Ele realmente leu tudo. E diz que levou cinco anos entre ler e escrever o livro.
Como as boas críticas literárias, é um livro sobre os prazeres e desprazeres de ler. Wolk já tinha escrito um livro parecido, Reading Comics, que era uma visão mais geral do que o leitor de quadrinhos encontra quando abre um gibi. Não no sentido teórico, nem essas coisas de ir na banca, de cheirar o papel, nada metafísico. Eram pequenos relatos sobre o que passa pela sua cabeça lendo Jack Kirby, ou Crumb, ou Carl Barks, ou Fun Home, ou reabrir o Warlock do Jim Starlin, ou pegar o último Chris Ware.
All of the Marvels é mais focado. Wolk não leu toda a Marvel em ordem cronológica e defende que ninguém devia. Você começa do ponto que quiser e (diferente dele, claro) segue lendo conforme der vontade. Um dos focos é contar o que os universos de quadrinhos têm que é só deles: narrativas compridas, de um mundo só, esticadas em décadas.
Ler o que ele tira de relevante, por exemplo, de 60 anos de gibis do Quarteto Fantástico – os cruzamentos, a revista que cita outra de 45 anos antes, as fases ruins, as fases horríveis, as fases tenebrosas, as pepitas – é um suco da experiência do fã que mais sofre que se encanta. Mas, quando se encanta, leva para a vida. Ou, no caso extremo como o dele, lê tudo.
Wolk escreve tanto para quem está chegando aos gibis agora quanto para quem já leu seus dez mil gibis da Marvel. Estou mais para a segunda categoria, e mesmo assim anotei várias recomendações. E é uma prosa com requinte:
O Mahabharata, na edição comentada, tem umas 13 mil páginas, o que dá mais ou menos todas as edições de O Incrível Hulk que já se publicou.
Se [John] Byrne desenha uma pistola na parede, é porque ela vai dar um tiro até o fim da edição; se [Chris] Claremont põe um personagem a comentar uma pistola na parede, é possível que ela nunca mais seja citada, ou pode acontecer que, daqui a sessenta edições, você descubra que é uma pistola amaldiçoada por um bruxo do século dezoito.
É a poesia de ser leitor de gibi. E não, ele não vai fazer o mesmo com a DC. Torça que saia por aqui.
TRABALHADORES, UNI-VOS
A notícia parece relacionada à de cima, mas não está. Na segunda-feira, dia 1º, os funcionários da Image Comics anunciaram a criação de um sindicato, o Comic Book Workers United (CBWU). É uma união de, por enquanto, dez pessoas que trabalham para a Image. Mas o nome sugere que existe a intenção de englobar outros funcionários de editoras dos EUA.
Não é um sindicato dos quadrinistas, coisa que não existe no país. E provavelmente não vai existir tão cedo. Segundo o Bleeding Cool, a lei norte-americana proíbe a criação de sindicatos de free-lancers, que é a condição de, salvo engano, todos os roteiristas, desenhistas, coloristas e outros na caixinha de créditos dos comics.
Nenhum dos autores é contratado. Como autônomos, caso fizessem demandas coletivas, eles seriam considerados equivalentes a cartéis – o que a lei proíbe.
Quem não é free-lancer, e sim funcionário contratado das editoras, são os editores, mais o pessoal do marketing e da produção gráfica, entre outros. Foram estes que começaram o sindicato esta semana. Na declaração da CBWU, eles se dizem motivados principalmente por esse período de pandemia, em que trabalharam em condições indesejáveis, tiveram que acelerar a produção e dão a entender que não tiveram o devido apoio da Image. Unidos, podem negociar com o patrão de forma mais eficiente.
A notícia agitou o mercado de quadrinhos e reacendeu a ideia de criar outras maneiras de união coletiva dos quadrinistas. Outras indústrias dos EUA, como cinema e animação, têm sindicatos e guildas fortes, que garantem um pouquinho de dignidade que a maioria dos quadrinistas não têm.
O ALCAZAR
Saiu um livrão. Uma HQzona. Meio na surdina, O Alcazar, de Simon Lamouret, é um dos grandes quadrinhos deste ano. Tão bom quanto é importante.
Sinceramente, não gosto quando se concentra o comentário de uma HQ (ou filme, ou livro ou o que for) em dizer que “é importante”. São “importantes” os quadrinhos que têm um tema que merece mais visibilidade, uma causa, algo que falta na sociedade, belíssimas intenções. Nunca recuso que há importância em dar visibilidade ao que merece visibilidade, mas o que é “importante” vira mais importante quando não é só “importante”, mas bom.
Que é o caso de Alcazar, um belo de um quadrinho com execução inteligente, um exemplo de narrativa clara que sabe explorar áreas cinzentas, com desenho e cor estupendos. E, sim, importante.
É a história da construção de um prédio em Bangalore, na Índia, da casinha dos pedreiros até os acabamentos em mármore. Com o foco nas pessoas: o mestre de obras, o capataz, o engenheiro iniciante, o filho do dono da construtora, o fornecedor enrolão e os peões que mexem a argamassa e botam cada tijolo no seu lugar.
Tem miséria, tem exploração, tem síndrome do pequeno poder, tem sonhos de progressão profissional e sonhos de família, tem acidentes de trabalho e tem bebedeiras. Tem tudo que impregna os meses de construção de um prédio e que faz você pensar no edifício em que você está agora mesmo. E a casa em que você mora, a parede aí do seu lado. Tem um Alcazar inteiro nessa parede.
Você lê uma prévia no site da editora Nemo. A tradução é de Renata Silveira.
CALMA
“Muita gente pergunta pra mim e pra Mel como é trabalharmos juntos”, Phellip Willian escreve no release. “Eu gostaria muito mais de responder como a gente enxerga o amor em todos os tipos de situações diárias, inclusive no trabalho. A gente tentou responder a esta pergunta através do Calmaria.”
Calmaria é o novo projeto da dupla formada por Phellip e Melissa Garabeli. É o segundo livro do que o casal chama de “trilogia do afeto”. Pelo primeiro, Saudade, Melissa ganhou o HQ Mix de Novo Talento – Desenhista e os dois foram finalistas do Prêmio Jabuti.
“O tema do livro é algo que talvez o mundo precise muito hoje”, diz Garabeli, também no release. “É uma pausa pro barulho do dia a dia, um tempinho que às vezes precisamos pra respirar.”
Calmaria começa quando o casal Lia e Tan se encontra debaixo da chuva. Similar a Saudade, o novo volume vai ter 112 páginas em capa dura. O projeto está no Catarse e, neste momento, está quase batendo a meta de R$ 40 mil. Você pode apoiar até 4 de dezembro.
VIRANDO PÁGINAS
A 1ª Bienal Internacional de Quadrinhos do Rio de Janeiro começou em 7 de fevereiro de 1991, há 30 anos. Com presença de Will Eisner, Alberto Breccia, Sergio Bonelli, José Muñoz, Carlos Sampayo, Paul Gravett e Moebius, foi o primeiro evento internacional de peso no país. Teve mais duas edições, em 1993 e 1997, e acabaria levando à criação do FIQ, em Belo Horizonte.
Coincidindo com a visita, foi um mês bom para fãs de Moebius (1938-2012). Enquanto a editora Abril republicava a Graphic Novel n. 11 – do Surfista Prateado, com roteiro de Stan Lee e arte do francês –, a Globo lançou a minissérie Os Mundos Fantásticos de Moebius, pouco depois de concluir a publicação de Príncipe de Aliors, colaboração entre o autor e Eric Shanower.
Bill Mantlo completa 70 anos na próxima terça-feira, dia 9. Conhecido como roteirista pau-pra-toda-obra da Marvel, ele começou como funcionário da editora em meados dos anos 1970 e escreveu praticamente todo personagem Marvel até fins dos anos 1980 – com destaque para criação de Rocky Racum e de Manto & Adaga. Em 1992, ele foi atropelado em Nova York, sofreu um traumatismo craniano grave e nunca se recuperou. Ele vive numa cama de hospital desde então.
A série Edição Maravilhosa, da Ebal, terminou no número 200 em novembro de 1961, há 60 anos. Lançada em 1948, a série marcou os anos 1950 com adaptações de literatura – inicialmente importadas, depois com quadrinistas nacionais adaptando literatura nacional, como O Guarani, de José de Alencar. A última edição trazia a versão de Pedra Bonita, de José Lins do Rego, por Manoel Victor Filho (1927-1995).
UMA CAPA
De Lee Weeks, em Superman ’78 n. 3. Saiu esta semana nos EUA.
UMA PÁGINA
Duas, de Terry Dodson (lápis e cores) e Rachel Dodson (arte-final), em Adventureman n. 6 – com roteiro de Matt Fraction. O primeiro volume da série, aqui chamada Os Aventureiros, saiu no mês passado pela Hyperion Comics.