O início do ano passado parece uma coisa distante, mas naquele outro mundo eu tinha um ritual de sábado à tarde: ir à Escudo Geek, pegar meus gibis da semana e ficar uns quinze minutos para conversar com o Antonio do Vale, o dono, e com outros que seguiam o ritual do sábado.
Conversas sobre gibi, claro. O que está saindo, o que vale a pena, o que não vale. Por que o filme da Marvel desse ano é ruim e por que o filme que a gente tinha achado ruim no ano passado, na verdade, é bom. Regatear por aquelas edições antigas da Piratas do Tietê, a coleção completa de Éden, uns importados que saíam de algum baú. Era o único lugar em que eu ficava à vontade de dizer quais gibis que eu traduzo são péssimos e que meus amigos deviam passar longe.
Amigos de banca, no caso. Não sei o que mais fazem da vida, não registrei nem os nomes (desculpem). Tinha o cara da barba, o moleque de óculos que só ficava escutando, tinha a menina que comprava pilhas de mangá enquanto o namorado marombeiro posava de guarda-costas, tinha o pessoal que vinha de cidades da volta, tinha crianças se decidindo entre Mônica ou Naruto (minha filha era uma). A gente tinha algo em comum.
Eu só tinha aqueles quinze minutos no sábado. Alguns passavam a tarde na banca. Eu também queria passar.
Os tempos pré-pandemia estão longe. Mas, se você tinha sua loja de quadrinhos por perto, faça uma força e você vai lembrar. Seja a Itiban (Curitiba), a Comix (São Paulo), a Quinta Capa (Teresina), a Comic House (João Pessoa), seja a banca da sua cidade decorada com Funko Pops: não eram só lugares para comprar gibi. Eram pontos de encontro, eram centros culturais, eram micro-mini-nano CCXPs e FIQs todo sábado à tarde.
Não estão sendo, por motivos que vão contra a vontade delas e do resto do planeta. Faz mais de um ano que, se não foi você mesmo que limitou suas saídas de casa, as prefeituras restringiram as aglomerações, a circulação nas ruas e o comércio físico. Lojas de quadrinhos são essenciais para nossa alma de leitor que quer mais leitura e conhecer outros leitores. Mas também é essencial que elas e outras lojas fiquem fechadas, fisicamente, para conter o avanço da pandemia.
O caso é que os tempos pós-pandemia estão mais perto do que os pré. Mesmo com desgoverno, estamos mais perto do fim dessa porcaria do que do começo. A dúvida é se as lojas de quadrinhos ainda estarão lá quando a gente chegar no pós.
Antonio do Vale, da Escudo Geek – a loja que frequento em Pelotas – diz que “o primeiro trimestre de 2021 foi pior do que qualquer trimestre de 2020, que já foram medonhos.” As vendas ficaram em um quinto do que é normal no período.
Muitos fregueses desapareceram. Somando variações de bandeira na região – que determinam que tipos de comércio podem abrir, de acordo com as ondas do vírus – e lockdowns, a loja passou um mês do trimestre de portas fechadas. A distribuição está bagunçada: a rede que se tinha para as revistas chegarem a pontos mais afastados do Brasil – como aqui, no extremo sul – deixou de existir. A loja tem feito um esquema praticamente de mercado direto: só encomenda das editoras o que os fregueses pedem.
Em cima disso, Vale diz que um fator forte é falta de poder aquisitivo dos clientes para comportar o aumento no preço de capa. “E aqui não culpo as editoras”, ele fala. “O custo Brasil está fora de controle, os insumos sobem uma vez por semana e o dólar está proibitivo.”
Vale inclusive pegou Covid-19 no final do ano passado. Está recuperado, felizmente, mas a Escudo Geek sofreu com semanas fechada e medidas de segurança para reabrir.
“Se eu tivesse juízo, já tinha fechado a loja”, ele me diz.
Guilherme Lorandi, da Loja Monstra (São Paulo), coloca em primeiro lugar na lista de problemas a falta de eventos que a própria Monstra promovia – como sessões de autógrafos, bate-papos ou liquidações.
Logo depois na lista de perrengue vêm a concorrência das grandes lojas online, as restrições para abertura física da loja, a falta de clientes eventuais e o aumento dos preços.
“Janeiro geralmente é um mês do ano mais parado mesmo, mas o faturamento foi de um terço em relação a janeiro de 2020”, ele conta. “Se janeiro é um mês fraco, e em janeiro de 2020 não havia pandemia, imagina um terço desse faturamento numa virada de ano de pandemia. Fevereiro mostrou uma reação, mas logo que março chegou com as novas e necessárias medidas restritivas, paramos de faturar.”
Eu já havia conversado com Lorandi em agosto, quando a Monstra estava se virando com horários alternativos e contato com os clientes via redes sociais. Desde lá, a loja estreou site próprio e está se puxando no que ele chama de “paixão e sedução”. Ele diz que só falta os clientes se acostumarem.
“Pode botar na conta do lápis. Frete grátis: a Monstra e a Amazon oferecem. Descontos: a Monstra e a Amazon oferecem. Pré-Venda com maior desconto: somente a Monstra oferece. Brindes exclusivos: somente a Monstra oferece. Pacotes personalizados: somente a Monstra oferece. Paixão e sedução: isso com certeza, é só na Monstra. Só não compra aqui quem ainda não se acostumou!”
Como a matéria do Gabriel Ávila mostrou na quarta-feira, aqui no Omelete, a situação é parecida em outra loja de quadrinhos de São Paulo, a Comic Boom! No Plural, Cristiano Castilho informou que a Itiban, com 31 anos em Curitiba, pode fechar em breve. As duas lojas também estão apostando nas vendas online para se sustentar até a volta da abertura física – com promoções e condições de pagamento especiais.
Comic Boom!, Itiban, Monstra, Comix e outras lojas uniram-se numa campanha que está circulando pelas redes sociais, a #ApoieAsLojasdeQuadrinhos. Com vídeos e outras postagens, a campanha quer justificar por que vale a pena comprar nas lojas neste momento – via digital – para garantir sua existência física no pós-pandemia. Como pontos de encontro, com eventos e com você namorando aquele importado na prateleira.
“Se você tem uma boa loja física na sua cidade, prestigie ela o máximo que puder”, diz Antonio do Vale, da Escudo Geek. “Enquanto ela existir, você terá um espaço único, diferenciado e alguém que te conhece pelo nome. Nas lojas virtuais, tudo é impessoal e você é apenas mais um número.”
“Falar de gibis enquanto a gente vive uma situação de guerra como essa é uma missão”, diz Lorandi, da Monstra, depois de citar os 66 mil mortos pela pandemia no Brasil, só em março. E em seguida solta a paixão e sedução:
“Eu tento usar uma venda no meu coração pra não enxergar essa atrocidade com a realidade. Nunca tive problemas pra dormir, mas nos últimos meses eu só consigo me acalmar às três da matina e despertar num susto às sete. Além de ter uma das empresas mais legais no meio dos quadrinhos, eu também sou uma pessoa. Que sente. Sente muito por isso. Pelos outros. É uma batalha diária afagar meu coração e vestir a camisa e ir pra luta. Eu também queria meu momento de desabar. Mas não posso. Eu sou resistência. Nós somos resistência. Lojas não são lugares que ‘vendem gibis a preço de capa’. A gente é instituição. A gente tem que estar de pé no final desse pesadelo, vendendo ou não vendendo, porque vai ser aqui que as pessoas voltarão a se reencontrar, sorrir, festejar e voltar a fazer história.”
Confira aqui as lojas, sites e outros contatos das lojas que fazem parte da campanha #ApoieAsLojasDeQuadrinhos.
Um dos motivos para a pandemia estar demorando mais do que devia, explicado em quadrinhos. Um grande acordo nacional, reportagem em HQ do paranaense Robson Vilalba, sai no mês que vem.
É a história da derrubada da presidente Dilma Rousseff e dos principais envolvidos no golpe: o deputado Eduardo Cunha, a jurista Janaína Paschoal, o senador Romero Jucá e o vice-presidente Michel Temer. No meio disso, o próprio Vilalba tentando entender a situação como jornalista cobrindo a política brasileira.
“A HQ tem um tempo que é lento, próprio do processo”, diz Vilalba, em conversa pelo Facebook. “E isso ajudou muito nesse projeto. Eu acho que as análises em texto sobre o período tinham esse esforço de tentar dar conta de tudo e ‘para hoje’. Nos quadrinhos eu poderia ir recolhendo diferentes impressões e ir percebendo o desenrolar dos fatos. E, na minha opinião, isso garantiu ao livro uma certa perenidade.”
Grande Acordo está em pré-venda pela editora Elefante.
Que Alan Moore é bom demais para o mundo em que a gente vive, você já sabia. Mas às vezes a gente desconfia por que Moore insiste com suas moorices.
Por exemplo: semana que vem sai nos EUA In Pictopia, edição de luxo de uma história curtinha escrita por Moore, com arte de Don Simpson, Mike Kazaleh, Pete Poplaski e Eric Vincent. Mas o nome de Moore não está na capa nem na divulgação – provavelmente a pedido dele.
Na descrição da editora Fantagraphics, In Pictopia é “uma HQ lendária criada em 1986, escrita pelo autor mais ousado daquela era”.
Por que o nome de Moore não aparece? Ninguém sabe. Mas quase todo mundo sabe que “Em Pictopia” é de Moore. Desde que saiu numa antologia, há 35 anos, ela circula entre os fãs do barbudão de Northampton e há pouco tempo entrou na coleção Histórias Brilhantes (lançada pela Mythos no ano passado). É realmente uma HQ lendária.
Em entrevista recente ao canal Inteligência Limitada, o editor Alexandre Callari, da Pipoca & Nanquim, disse que a editora tentou negociar novos materiais de Moore para publicação no Brasil – e não conseguiu, porque Moore não libera os direitos. Aparentemente, o “autor mais ousado” dos anos 1980 não quer que alguns de seus quadrinhos voltem a circular.
O que é totalmente do direito de qualquer autor. Mas não deixa de ser uma moorice meio estranha.
É o que também estranha o novo agente literário de Moore, James Wills, em entrevista ao Bookseller. Apesar de ter agentes para seus quadrinhos, Moore publicou alguns livros de prosa e nunca teve agente nessa área, até agora.
“Ele me disse que não acreditava em agentes”, diz Wills. “E é uma pena, porque talvez algumas coisas teriam sido diferentes pra ele. Mas estou feliz em representá-lo.”
Wills também diz que está negociando com editoras britânicas trabalhos inéditos de Moore: uma coleção de contos e uma série de “ficção especulativa” chamada Long London.
Quando foi entrevistado para a CCXP no final do ano passado, Adrian Tomine disse que estava trabalhando na sua primeira experiência com roteiro para cinema – mas não podia dar detalhes.
Os detalhes saíram esta semana. O próprio Tomine adaptou seu primeiro trabalho extenso, Shortcomings, e o filme será a estreia do ator Randall Park na direção.
Tomine e Park já estão de papo há algum tempo.
Shortcomings trata do fim de um namoro e os caminhos que ele e ela tomam a seguir. Ben Tanaka, o cara, é um personagem detestável. Miko Hayashi, a menina, é uma ativista política ligada em questões raciais. O pano de fundo é a vida dos jovens de ascendência asiática nos EUA.
A graphic novel é inédita no Brasil.
Outra adaptação de Tomine deve sair este ano. Les Olympiades, com direção do francês Jacques Audiard, está em pós-produção e já ganhou distribuidor e títulos nos EUA: Paris, 13th District. O roteiro mistura trechos de Intrusos e de Summer Blonde, duas coleções de contos de Tomine.
Helô d’Angelo vai reunir as histórias dos seus vizinhos paulistanos durante a pandemia em álbum. É Isolamento, que acabou de estrear no Catarse. Serão 200 páginas do que ela publicou nas suas redes entre o ano passado e este. Tem apoios a partir de R$ 30.
Uma Nuvem no seu Oliveira é a colaboração entre Phellip Willian e Eduardo Ribas com a história de um velhinho rabugento que quer ditar a vida das crianças do bairro. Dá para apoiar com direito a arte comissionada e preços módicos. A campanha vai até 4 de maio.
Dieferson Trindade tem só 24 anos, é porto-alegrense e já lançou sete HQs via Catarse. A nova chama-se Os Dias Ruins Acabaram, e trata de dois amigos caminhando pelo bairro enquanto discutem família, políticos e sorvete. Só o traço do Dieferson já é um acontecimento no quadrinho brasileiro, e ele ainda manja bem de diálogos. A HQ custa só R$ 24.
Sin City, de Frank Miller, estreou há 30 anos na Dark Horse Present Fifth Anniversary Special. O que começou como uma série de pequenas histórias virou um dos maiores trabalhos da vida de Miller. Escrevi 25 curiosidades sobre a série quando ela fez 25 anos, aqui no Omelete.
Stefano Tamburini, um dos criadores de Ranxerox e fundador das revistas italianas Cannibale e Frigidaire, faleceu há 35 anos por overdose de heroína. Seu corpo foi encontrado no apartamento em Roma em abril de 1986, e ninguém sabe a data exata do falecimento. Ele tinha só 30 anos.
O pernambucano Watson Portela publicou uma das primeiras “graphic novels” brasileiras, Paralelas, há 35 anos. Era uma coleção de histórias autorais de Portela, que já tinha carreira no quadrinho erótico e viria a produzir muito na Editora Abril. Paralelas foi reeditado pela Devir em 2015.
Jason Lutes começou a publicar Berlim como série em abril de 1996, há 25 anos. Levaria quase todo esse tempo para concluir a história, o calhamaço que saiu no ano passado no Brasil (pela Veneta) e que é um dos grandes quadrinhos americanos da década.
Provisória, daquele que provavelmente será o quadrinho mais vendido no mundo em 2021: Asterix e o Grifo, nova aventura dos gauleses por Jean-Yves Ferri e Didier Conrad. Foi divulgada esta semana. Asterix continua sem publicação no Brasil e ninguém entende por quê.
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