HQ/Livros

Lista

Enquanto Isso | Um quadrinista brasileiro e um golpe internacional

Mais de vinte artistas foram lesados em golpe ainda sem explicação

19.03.2021, às 14H28.
Atualizada em 20.03.2021, ÀS 13H46

O paulista Abraham Aguiar assina seus trabalhos como BRÄO. São dele os quadrinhos independentes Diva Satänica, Vermilliön e Cornücópia, assim como as colaborações com o roteirista Felipe Cagno em The Few and The Cursed, Adagio e One-Eyed Jack. Bräo publica no Brasil e no exterior, tem site preparado para clientes estrangeiros e trabalha há mais de uma década com ilustração e HQ.

Em agosto do ano passado, Bräo recebeu o contato de uma revista de moda francesa, a Numéro. A pessoa havia visto Vermilliön e queria ilustrações naquele estilo de uma personagem, uma modelo negra. Havia referências, desenhadas por outros ilustradores.

Depois de Bräo topar, o projeto cresceu: a modelo ia virar a heroína de um gibi chamado Avanthunt. Chamada Anisha, ela é – segundo um documento de apresentação – um “avatar da singularidade nua autoconsciente que antecede o universo”, que vem “influenciando a cultura e a moda da humanidade” desde que criou sua personificação humana, há 92 mil anos.

Bräo foi convidado a desenhar o primeiro álbum. O conceito, lhe informaram, era do roteirista Warren Ellis, que iria orientar o roteiro da escritora em ascensão Eve Ewing (Coração de Ferro, Campeões). O projeto era ligado à Casterman, editora gigante do quadrinho belga. Seria uma oportunidade grande não só para um quadrinista brasileiro, mas de qualquer lugar do mundo.

Com contrato assinado com a Casterman, Bräo produziu a primeira HQ: 39 páginas de Avanthunt, das melhores que ele já fez – são as imagens que você está vendo na coluna. Ele trocava e-mails com a roteirista Eve Ewing. Por meio dela, ficou sabendo que Warren Ellis gostou das primeiras páginas e por isso o brasileiro estava convidado a fazer o terceiro álbum de AvantHunt; o segundo já estava em produção por outro desenhista.

Depois de dois meses de trabalho, Bräo começou a questionar sobre as parcelas do seu pagamento, que já estavam atrasadas em relação ao que o contrato previa. Quem lhe respondia era um diretor de projetos especiais da Numéro, Jonathan Heatherly. Heatherly ia resolver o pagamento com a Casterman e com a agente de Warren Ellis.

A grana não chegou. Bräo parou aquele trabalho até a questão se resolver e foi atender outros projetos. Passado mais um mês, resolveu entrar em contato direto com a Casterman e com a agente de Warren Ellis. Já tinha uma desconfiança de qual seria a resposta.

Nem a editora nem a agente sabiam do projeto. Bräo tinha um contrato da Casterman, assinado por uma funcionária da Casterman – mas a funcionária não existia. A agente de Ellis, por sua vez, confirmou que o escritor não está produzindo nada depois dos casos de abuso que vieram à tona no segundo semestre de 2020.

Faltava Eve Ewing. Em vez de falar pelo e-mail no qual sempre conversava com a escritora, ele decidiu chamá-la pelo Instagram. O contato demorou, mas Bräo acabou descobrindo que Ewing também não estava envolvida em nada chamado Avanthunt.

Quem falava com ele como se fosse Ewing? Mistério. De quem era o roteiro que ele estava seguindo? Outro mistério.

Antes de falar com seu principal contato no projeto – Jonathan Heatherly, o diretor de projetos especiais da Numéro –, Bräo resolveu ver os nomes de outros artistas envolvidos em Avanthunt. Estavam todos em e-mails que Heatherly havia lhe enviado, com dezenas de concepts e esboços da protagonista da HQ.

O sul-coreano Danny Kim havia ficado responsável por desenhar o segundo volume de Avanthunt. Tinha produzido oitenta páginas. Bräo perguntou se o colega tinha recebido algum pagamento. Nada, igual a ele.

Os dois foram atrás de outros artistas de quem eles tinham artes de referência, como o japonês Kamio Tonomori – que assina como Godtail –, o espanhol Josep Giró Torrens e a norte-americana Mako Vice. Estes e outros só tinham feito ilustrações e concepts. O italiano Stefano Realdini havia recebido como referência as artes do próprio Bräo e foi informado que o material do brasileiro tinha vindo do estúdio de Milo Manara.

No total, são quase vinte artistas, de várias nacionalidades. Ninguém havia sido pago.

Eve Ewing – a Eve Ewing de verdade, não a pessoa com quem Bräo vinha conversando sobre o roteiro – lhe enviou um link revelador: em julho do ano passado, o Bleeding Cool revelou que artistas como Afua Richardson, Ken Lashley e outros haviam caído num golpe que envolvia produzir ilustrações da mesma modelo negra para uma suposta parceria entre a revista GQ México e a Marvel Comics. A modelo tinha inclusive nome, Anisya Ansimova, e fotos.

O material foi produzido, entregue e chegou a circular por sites de moda. Mostra Asimova como Tempestade, Pantera Negra, Coração de Ferro e com o traje de Miles Morales. Até onde se sabe, os ilustradores nunca foram pagos. A Marvel não tinha nada a ver com o projeto – e supostamente ainda está investigando o caso. Também não há registro de que a GQ México usou ou contratou as capas.

Não se sabe se Anisya Ansimova tem algum envolvimento nos golpes, nem se este é o nome real da modelo que aparece nas fotos. Suas fotos, aliás, normalmente são assinadas pelo fotógrafo Jonathan Headley – um nome muito parecido com o Jonathan Heatherly com quem Bräo estava em contato.

Em três meses de trabalho, o brasileiro e “Heatherly” – supostamente um britânico que mora em Lisboa, mas agora não se sabe nem se este é seu nome real – estavam em contato frequente, chegando a trocar feliz natal e feliz ano novo, e festejando como o trabalho estava evoluindo bem.

Em janeiro, sabendo de todo o esquema, Bräo foi tirar satisfações com “Heatherly”. Ele compartilhou a troca de e-mails comigo.

“Heatherly” responde num inglês confuso que “nunca teve intenção de roubar [Bräo] nem ninguém da sua arte” e que “fiz isso pelo puro desejo de criar uma coisa, de soprar vida em algo novo”. Também pede desculpas e encerra dizendo que é “extremamente difícil conviver com o transtorno bipolar. E é extremamente difícil viver sozinho.”

Bräo descobriu que “Heatherly” mandou o mesmo e-mail, com pequenas alterações, aos outros artistas que o confrontaram por causa do golpe. É o mesmo e-mail que outro artista, o norte-americano Dave Law, postou no Reddit. Também no Reddit, Danny Kim contou da mesma “canalhice de dizer que é bipolar”.

O brasileiro Octavio Cariello – um veterano do quadrinho brasileiro, que se envolveu em Avanthunt a convite de Bräo para trabalhar no letreiramento da HQ – também fez uma postagem no Reddit para denunciar o golpe.

(Nos relato de outro artista lesado, o do norte-americano Sam Blanchard, o “Diretor de Projetos Especiais da Revista Numèro” tem outro nome: “Jin So-Ang”.)

Há uma semana, Eve Ewing, a verdadeira, postou no Instagram que vários artistas estão sendo convidados a trabalhar em um projeto supostamente escrito por ela – e reafirmou que não está envolvida. Ewing diz que tem um advogado apurando o caso.

Felipe Cagno, o roteirista parceiro de Bräo em One-Eyed Jackque terá novo volume este ano – acha que “Jonathan Heatherly” queria montar um pitchbook: “Quando o Bräo me mostrou o portfólio que ele conseguiu montar, sketches, páginas, concepts, pôsteres de cinema, etc, na hora pensei: o cara está montando uma bíblia de apresentação de projeto”.

Seria improvável que “Heatherly” publicasse o material em qualquer parte do mundo, em versão digital ou impressa, sem que Bräo e outros envolvidos ficassem sabendo. “Ou o cara estava enrolando todo mundo só pelo prazer de ter uma coleção de artes só dele”, diz Cagno, “ou, como eu enxergo, ele estava montando uma apresentação pra rodar nas produtoras e estúdios em Hollywood.”

Em e-mail à coluna, “Heatherly” nega todas as acusações e diz que Bräo “é um artista de muito talento, mas que infelizmente ele decidiu trocar de lado e prejudicar o projeto em que trabalhamos”. Ele diz que as alegações dele e de outros são “ridículas e sem sentido” e que só voltará a entrar em contato via advogados.

Segundo os relatos dos artistas lesados, “Heatherly” continua aplicando golpes em outros ilustradores e quadrinistas. O projeto às vezes muda de nome, de Avanthunt para Avantverse. Danny Kim diz que a nova versão do golpe inclui imagens da modelo coreana Sora Choi.

Bräo está desconsolado. “Naqueles dois meses eu conversei mais com esse cara do que com minha esposa”, ele diz. “A minha vontade de acreditar que era verdade era maior do que minha suspeita”, complementa.

No e-mail em que confrontou “Heatherly”, Bräo diz que, apesar de toda a situação, gosta muito do que produziu e vai publicar a HQ no Brasil. “Você pode ter uns arquivos aí, mas as páginas são minhas”, ele escreve ao suposto golpista. “Não tem contrato que lhe dê direito de publicar. É só eu mudar uns traços, mexer no roteiro e vou vender mil exemplares aqui no Brasil, do MEU quadrinho.”

Bräo tem outros trabalhos antes: está com uma campanha no Catarse para a reedição de Cornucöpia e prepara uma “continuação espiritual” dessa HQ para o segundo semestre. Também tem os projetos com Felipe Cagno.

Avanthunt, que deve virar Joana, vai ficar para o fim deste ano ou para o ano que vem. Não só para compensar o desfalque financeiro, mas também para fazer “Heatherly” perder sua própria co-criação.

“Você tem um projeto bom, um conceito bom”, Bräo escreve no e-mail a “Heatherly”. “Foi divertido trabalhar contigo. Pra que você foi mentir, cacete? Se tivesse sido sincero comigo, se tivesse vindo com a intenção genuína, eu ia ter embarcado e feito do mesmo jeito que eu fiz. MESMO ASSIM. Quem perdeu foi você, ‘amigo’.”

“Heatherly” responde: “Você me admitiu várias vezes que a história é boa e, diabos, eu sei que você adora e viveu isso junto comigo. Seus outros trabalhos são ótimos, mas admita, de novo, que você chegou num novo patamar quando fez o primeiro volume dessa HQ”.

Para mim, Bräo diz que concorda com o golpista. “No fundo, eu queria que essa merda fosse verdade.”

NA SEMANA PASSADA

Não publiquei coluna. Ponho a culpa na Covid-19 e nesses tempos malucos em que a gente vive. (Mas estou bem e a família também.)

O que eu queria ter falado de mais importante na semana passada:

Al Jaffee completou 100 anos. Jaffee começou a fazer quadrinhos na época dos seus avós, em 1942. Trabalhou na Marvel quando se chamava Timely; criou uma tira que circulou em 100 jornais, a Tall Tales, saindo do horizontal para brincar com verticais; entrou na Mad no início da revista e criou as “dobradinhas”: aqueles desenhos na quarta capa que você dobra para criar outro desenho.

Trabalhou até julho do ano passado, quando publicou sua última dobradinha, ganhou uma edição tributo na Mad e entrou pro Guinness como carreira mais longa nos quadrinhos: 73 anos e três meses. Você pode lhe dar os parabéns atrasados numa conta do Twitter feita só para isso no Twitter: a @jafee100.

Segundo o Guardian, os detentores dos direitos de Tintim processaram o artista francês Xavier Marabout por pintar quadros com um mash-up entre o personagem de Hergé e o icônico pintor norte-americano Edward Hopper.

Além da referência hopperiana, os quadros insinuam a única coisa que os quadrinhos de Tintim não têm: sexo. Aqui você confere todos.

A capa da semana, sem sombra de dúvida, é de Cris Camargo, tirando sarro da brincadeira de Frank Cho com a Mulher-Maravilha brasileira que também causou furor na rede.

O melhor texto sobre WandaVision e sobre fãs: “WandaVision não conseguiu me trazer o que nunca me prometeu”, de Matt Goldberg, no Collider:

“Ao tratar a narrativa de Wanda como uma trama sobre luto, perda e superação, a Marvel me negou a chance de conectar aos filmes tudo que eu entendo de gibi. Vocês acham que a gente lê gibi pra se divertir? NÃO. A gente lê pra juntar uma cacetada de conhecimento sobre as tramas e aí ter segurança de que está na frente de todo mundo quando aparece um filme que repete as tramas. Pra que brincar com minha expectativa, Marvel? Pra me surpreender? Pra me dar alegria? Eu só tenho alegria quando minhas teorias de fã se comprovam e todo mundo vê que eu sou inteligente.”

E Frank Thorne, artista que fez homens e mulheres ter sonhos molhados com Sonja, faleceu no último dia 7, aos 90 anos. O obituário mais bonito é de Chloe Maveal, na NeoText.

VIRANDO PÁGINAS

Faz 60 anos que Adam Strange estreou no Brasil, na edição 1 de Homem no Espaço, da editora O Cruzeiro. Era a publicação da primeiríssima história do personagem, que tinha estreado um ano antes nos EUA. Estranhas Aventuras, a brilhante comemoração do aniversário do herói, sai este mês pela Panini – com roteiro de Tom King, arte de Mitch Gerards e Evan Shaner, e tradução de Mario Luiz C. Barroso.

Todd McFarlane completou seis décadas de vida na última terça-feira, dia 16. Apocalipse, o vilão dos X-Men, fez 35 anos no dia 18. Al Williamson (1931-2010) completaria 90 anos no dia 21. E prepare os parabéns para Brian Bolland, que completa sete décadas na próxima sexta-feira, dia 26.

UMA PÁGINA

De Crime Syndicate n. 1, da semana passada, Bryan Hitch (com cores de Alex Sinclair) emula a página antológica que abriu Grandes Astros: Superman n. 1, de Grant Morrison e Frank Quitely. É a origem de Ultraman, contada tal como a de Superman – em quatro quadros e oito palavras, mas com uma alteração no final que muda tudo.

UMA CAPA

De Amanda Miranda para “Atentas”, novo álbum da banda Charlotte Matou um Cara.

 

(o)

Sobre o autor

Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato.

Sobre a coluna

Toda sexta-feira, virando a página da semana nos quadrinhos. O que aconteceu de mais importante nos universos das HQs nos últimos dias, as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.

#33 – WandaVision foi puro suco de John Byrne

#32 - Biografia de Stan Lee tem publicação garantida no Brasil

#31 - Sem filme, McFarlane aposta no Spawnverso

#30 - HQ dá solução sobrenatural para meninos de rua

#29 - O prêmio de HQ mais importante do mundo

#28 - Brasileiros em 2021 e preguiça na Marvel

#27 - Brasileiros pelo mundo e brasileiros pelo Brasil

#26 - Brasileiros em 2021 e a Marvel no Capitólio

#25 - Mais brasileiros em 2021

#24 - Os brasileiros em 2021

#23 - O melhor de 2020

#22 - Lombadeiros, lombadeiras e o lombadeirismo

#21 - Os quadrinistas e o bolo do filme e das séries

#20 - Seleções do Artists’ Valley

#19 - Mafalda e o feminismo

#18 - O Jabuti de HQ conta a história dos quadrinhos

#17 - A italiana que leva a HQ brasileira ao mundo

#16 - Graphic novel é só um rótulo marketeiro?

#15 - A volta da HQ argentina ao Brasil

#14 - Alan Moore brabo e as biografias de Stan Lee

#13 - Cuidado com o Omnibus

#12 - Crise criativa ou crise no bolo?

#11 - Mix de opiniões sobre o HQ Mix

#10 - Mais um fim para o comic book

#9 - Quadrinhos de quem não desiste nunca

#8 - Como os franceses leem gibi

#7 - Violência policial nas HQs

#6 - Kirby, McFarlane e as biografias que tem pra hoje

#5 - Wander e Moebius: o jeitinho do brasileiro e as sacanagens do francês

#4 - Cheiro de gibi velho e a falsa morte da DC Comics

#3 - Saquinho e álcool gel: como manter as HQs em dia nos tempos do corona

#2 - Café com gostinho brasileiro e a história dos gibis que dá gosto de ler

#1 - Eisner Awards | Mulheres levam maioria dos prêmios na edição 2020

#0 - Warren Ellis cancelado, X-Men descomplicado e a versão definitiva de Stan Lee