Manipulação mental? Realidade alternativa? Uniforme novo? Super-herói brigando com o governo? Participação especial do herói de outro gibi? Flashback? Participação especial de herói de outro gibi no flashback? Bocas em pânico na virada de página? Raiozinhos coloridos saindo das mãos de gente mais colorida? Uma subtrama plantada pra daqui a três capítulos? Outra participação especial?
Isso é coisa de todo gibi de super-herói. É o que faz gibi de super-herói ser gibi de super-herói. Ou era. Na minha lembrança, os melhores quadrinhos que tinham tudo isso – e mais – eram os de John Byrne.
Byrne, hoje, é um senhorzinho de 70 anos proscrito da DC e da Marvel Comics porque é muito chato. Nem ele vai negar. Nos anos 1980, minha infância, ele era o desenhista querido de tudo que valia na Marvel e na DC: Quarteto Fantástico, Tropa Alfa, Superman, Vingadores, uma e outra história do Homem-Aranha, do Hulk, do Capitão América. Valiam mais quando ele desenhava.
Só mais tarde fui ler seus X-Men, sua sagração nos quadrinhos. Também foi só mais tarde que eu percebi que Byrne era roteirista de algumas histórias que desenhava.
Byrne apareceu num momento em que a ideia de Universo Marvel já estava mais do que coesa e, independente da série em que ele se metia, ela sempre tratava do Universo Marvel como um todo. O Quarteto precisava da ajuda dos Vingadores, a Tropa Alfa cruzava com os X-Men, a Mulher-Hulk zoava que era da editora do Homem-Aranha. Até seu Superman, que teoricamente era uma reformulação “do zero”, se servia no buffet de 50 anos do Universo DC.
Jim Starlin já fazia isso de forma cósmica com a Marvel dos anos 1970, e sua saga de Thanos foi inspiração óbvia para os filmes bilionários dos Vingadores. Mas Byrne levou isso a outro nível, com menos maconha que Starlin. WandaVision, como evolução do MCU, foi o Universo Marvel de John Byrne.
Começa pelo fato de Byrne ter certa predileção por Wanda – ou, como a gente dos gibis conhece, Feiticeira Escarlate. Tem, por exemplo, uma sequência de Vingadores no final dos anos setenta desenhada por Byrne, as "Noites de Wundagore", que foi determinante pra pensar essas origens místicas e mal explicadas do poder da Feiticeira.
Dez anos depois, quando Byrne assumiu os Vingadores da Costa Oeste, a Feiticeira virou pivô de várias tramas: o desmanche do Visão, então seu marido; o apagamento dos filhos; quando ela foi corrompida e se transformou em vilã. (Pensando bem, talvez Byrne não gostasse dela - já escrevi sobre isso.)
A sala de roteiristas de WandaVision não leu só John Byrne. O seriado tem uma salada de referências a gibis Marvel de vários autores e várias épocas. Mas Byrne infectou aquela sala. WandaVision virou suco de John Byrne.
O fato de que a Elizabeth Olsen parece um desenho byrneano só contribui.
Mas o que pega mesmo é essa ideia do universo, da novelinha que é uma revista (ou seriado) da Marvel não ser só aquela novelinha, mas parte de uma teia de personagens e relações e eventos cósmicos que vai ribombar de uma revista (ou seriado) pra outra (ou outro). Byrne nunca passou por um personagem só. Estava sempre no universo.
Eu penso que um dos atrativos de Byrne era como seu desenho era mais limpo do que de outros artistas. Ele economizava no nanquim para deixar o colorista gastar nas tintas. Cor é a primeira coisa que capta a mente infantil, dos 8 aos 80 anos. E Byrne estava sempre somando personagens para trazer mais cor.
WandaVision foi somando: Jimmy Woo, Capitã Marvel, Mercúrio, E.S.P.A.D.A., Agatha Harkness (e a trama de relações de Agatha Harkness na Marvel), Visão vermelho, Visão branco, o desfile de uniformes no episódio de Dia das Bruxas.
(Também penso que Byrne fazia isso não só para mexer com nosso cérebro réptil, mas pra não se entediar. É bom desenhar outros personagens que não os titulares.)
Para saber se a impressão é só minha, consultei um perito em Byrne: o tradutor e crica Pedro Bouça. Ele disse que não assistiu Wandavision, mas concorda com minha descrição de Byrne.
“Eu diria que John Byrne era um dos raros autores a pensar no universo Marvel como um todo e como a parte que ele escrevia na altura encaixava-se nesse todo. Que foi ironicamente o que o afastou dos quadrinhos, já que a tendência Bendis-ana atual de cada um escrever o seu canto e ignorar - ou até contrariar, a seu bel prazer! - o que os seus pares fazem em outras séries o alienou dos quadrinhos americanos contemporâneos. Ironicamente, o homem que nasceu para trabalhar em franquias de super-heróis agora não pode mais fazer isso.”
Quem quiser conhecer mais de Wanda/Feiticeira Escarlate por Byrne vai ter que fuçar nos sebos. A saga em Wundagore, primeira história que trata dos poderes místicos da Feiticeira (com roteiro de Mark Gruenwald, David Michelinie e Steven Grant, desenhos de Byrne) saiu só em formatinho, em Heróis da TV 93-94 (editora Abril, 1987). Seus Vingadores da Costa Oeste foram republicados pela Panini em 2006 em Os Maiores Clássicos dos Vingadores n. 2 e pela Salvat no volume Feiticeira Escarlate (2016).
Mas se você quiser Byrne no geral, é só pegar o Quarteto Fantástico Omnibus que saiu no fim de 2020 (o volume dois vem aí), ou A Saga do Superman, com sua reformulação do herói da DC, que começa a sair este mês. Ambos pela Panini.
Byrne ganhou agradecimentos no penúltimo episódio de WandaVision, provavelmente porque o episódio usou abertamente suas ideias do Visão desmontado e reconstruído em versão branca. Devia ter recebido thank you em cada capítulo.
TODAS AS MARVELS
Falando em Universo Marvel, tem um livrão bom que sai este ano: All of the Marvels: a journey to the ends of the biggest story ever told (Todas Marvels: uma jornada aos confins da maior história já contada), do crítico norte-americano Douglas Wolk.
Em resumo: Wolk leu todos os gibis da Marvel de 1961 pra cá e conta como foi. A descrição oficial:
Os gibis de super-herói que a Marvel Comics publica desde 1961, observa Douglas Wolk, são a maior obra de ficção contínua e fechada que já se criou: mais de um milhão de páginas, e cada vez mais. A narrativa Marvel é uma montanha gigantesca, encaixada no centro da cultura contemporânea. (...) Nem quem está contando essa história a leu do início ao fim – pois ninguém precisa ler tudo. Por isso, é óbvio que Wolk leu: todos os 27 mil gibis que compõe o Universo Marvel até aqui, de Amazing Fantasy a Zumbis Marvel.
E aí ele foi achar o sentido nessa trama: captar essa história em expansão constante, em cada pecinha e como um todo, e além, como prisma da cultura norte-americana. Nas mãos de Wolk, a colossal narrativa Marvel tornou-se a casa dos espelhos dos últimos 60 anos, desde os terrores atômicos da Guerra Fria à tecnocracia e polarização política do presente – um épico turbulento, tragicômico e magnificamente requintado sobre poder e princípios, que se passa num mundo transformado pelas maravilhas.
Está previsto para outubro, pela Penguin. Wolk é autor de outro livraço sobre HQ, Reading Comics, e vez por outra publica uma resenha no New York Times. Ele tem um diário da leitura para All of the Marvels no Tumblr.
O MUNDO É DA BILQUIS
A primeira página de Bilquis Evely em Batman: Black & White #3
Ao longo dos últimos anos, com suas páginas deslumbrantes em Mulher-Maravilha e Tutuca e Teleco-Teco, assim como na série d’O Universo de Sandman, O Sonhar (indicada ao Eisner), Bilquis Evely tornou-se uma das estilistas de maior elegância nos quadrinhos. Seu trabalho é de uma vivacidade extraordinária que lembra o que há de melhor na ilustração clássica. Os leitores se perdem em cada pincelada. As páginas de Evely exigem, elegantemente, várias apreciações para perceber quanto de coração e quanto de ponderação artística passa por cada fenomenal prancha.
É a nota biográfica e crítica que a brasileira Bilquis Evely ganhou na última edição de Batman Black & White, na qual ela desenha uma história - que também é sua estreia como roteirista.
(“Fiquei emocionada quando o editor me mandou esse texto”, ela me contou via Twitter.)
No dia seguinte, ela foi anunciada como desenhista da nova série da Supergirl, junto ao roteirista mais elogiado da DC, Tom King, e com seu parceiro de cores em O Sonhar e outros projetos, o também brasileiro Mat Lopes.
MATTOTTI NO ESTÚDIO
Gosto de dar uma espiada no ambiente de trabalho dos quadrinistas. O vídeo acima tem uma passada curta, mas interessante, pelo de Lorenzo Mattotti, italiano que mora em Paris, autor de Estigmas, João & Maria e vários quadrinhos belíssimos.
O vídeo faz parte de uma exposição do Cartoonmuseum Basel – na Basileia, Suíça – sobre Vida na Metrópole, com originais de Mattotti, Chris Ware, Art Spiegelman, Gabriella Giandelli, Christoph Niemann, Sempé e outros. Dá para ver algumas obras aqui.
Mattotti fala de como a cidade o inspira – e do que fez durante a pandemia. “Fiz vários desenhos cheios de gente: no bar, nas ruas, com tudo lotado. Gente caminhando, falando, rindo, dançando. Talvez porque isso parou de acontecer. Talvez pra pensar como é a sociabilidade humana quando tudo está normal. O que perdemos. O que, quem sabe, eu precisava.”
O SUPERMAN DE NABOKOV
Um dos primeiros trabalhos em inglês do escritor russo Vladimir Nabokov (1899-1977) – de Lolita, Ada ou Ardor, Fogo Pálido e outros – foi um poema sobre o Superman. Escrito em 1942, recusado pela New Yorker, ele ficou esquecido por oitenta anos nos arquivos do escritor, até ser descoberto recentemente por um estudioso.
Em 1942, Superman tinha apenas quatro anos de existência. Era uma das leituras preferidas do filho de Nabokov, que se inspirou ao ver a capa do gibi acima.
O poema traz a primeira reflexão, pelo menos no papel, sobre como seria sexo entre Superman e Lois Lane. O próprio Super pensa, no texto, que sua “explosão de amor” mataria a namorada. E que, mesmo que sua “frágil compleição” saísse inteira, “tal criança monstro, a derrubar o cirurgião / e sair bamboleante, assustando a multidão?”
O poema completo - e a história da redescoberta - estão no Times Literary Supplement.
ADEUS, NIMONA?
Um dos textos mais legais que li esta semana é da Kael Vitorelo, no Mina de HQ. Trata de Nimona, o quadrinho de Noelle Stevenson que ia virar animação.
No início de fevereiro, a Disney fechou o estúdio Blue Sky e matou todos os projetos em desenvolvimento. Nimona, em produção há seis anos e já com data de lançamento (14 de janeiro de 2022) morreu na leva.
No texto, Vitorelo fala da carreira de Stevenson, da importância de Nimona e da perda (ou ganho) que se tem agora que “Nimona nunca será princesa”.
Com o passar do tempo e sem surpresa alguma, fui descobrindo que Noelle é muito como eu, e que eu sou muito como Noelle. E, cada vez mais, somos muito como Nimona, talvez até de formas que não imaginávamos – sempre lutando, sempre mudando, procurando, meio menina e meio monstro, mas nenhum dos dois.
O texto está aqui. Ontem, o Collider disse que ainda há chance – embora pequena – de o filme acontecer.
VIRANDO PÁGINAS
A primeira e antológica página de Hitman n.1
Hitman n. 1, a criação dos irlandeses Garth Ennis e John McCrea para a DC Comics, saiu nos EUA em 7 de março de 1996, há 25 anos. É um dos marcos na carreira de Ennis e dos super-heróis para adultos.
No mesmo dia, saía lá fora DC versus Marvel Comics n. 4, a conclusão do primeiro mega crossover entre os dois universos de super-heróis, por Peter David, Ron Marz, Claudio Castellini e Dan Jurgens.
Ranma 1/2, umas das criações da japonesa Rumiko Takahashi, concluiu sua publicação original em março de 1996, também há 25 anos. A série do menino que vira menina que vira menino que vira menina saiu aqui pela última vez pela editora JBC, entre 2009 e 2013.
Também em março de 1996, Sin City: Cidade do Pecado, pela Editora Globo, inaugurou a publicação da série criminosa de Frank Miller no Brasil.
E ainda foi o em que o Spawn de Todd McFarlane aportou no Brasil, em série própria pela Editora Abril, com o número 1. A série teve 150 edições, até dezembro de 2005, e seguiu por dois anos na editora Pixel.
Março de 1996 foi um mês movimentado!
UMA PÁGINA
De 1984, de George Orwell na versão ilustrada pelo quadrinista Rafael Coutinho e publicada pela Antofágica (com tradução de Antonio Xerxenesky). Está longe de ser o típico livro ilustrado, e tem umas experiências que passam pelos quadrinhos e vão além. Clique para ampliar essa de cima, veja outras aqui.
A edição entrou na lista de mais vendidos da revista Veja, chegando ao primeiro lugar na semana passada. O feito é mais considerável se você pensar que há 24 edições de 1984 à venda no Brasil, todas lançadas este ano. O livro entrou em domínio público e sempre foi campeão de vendas no nosso país distópico.