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HQ: <i>Dylan Dog</i> - O Investigador do Pesadelo

HQ: <i>Dylan Dog</i> - O Investigador do Pesadelo

24.11.2003, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H15

Groucho

Em vez de espionar esposas para maridos ciumentos ou desvendar casos de roubos e assassinatos em que normalmente o assassino é o mordomo, o amante ou a esposa desprezada, ele prefere se dedicar às questões ligadas ao Mundo do Além - sendo, inclusive, conhecido como o Investigador do Pesadelo -, e enveredar por intrigas muito mais próximas das tramas de Stephen King e Anne Rice do que se envolver nas narrativas policiais comuns nos quadrinhos.

Só isto já faria dessa personagem um elemento distinto no universo de protagonistas de séries quadrinhísticas, mas suas histórias não se destacam apenas pelo inaudito de suas temáticas. Pelo contrário. Mais do que o representante de um gênero inusitado, esse herói aglutina uma gama de elementos incomuns que o colocam em uma posição privilegiada em relação a outras obras dos quadrinhos, principalmente aquelas que, como ele, são veiculadas pelo mercado industrial conhecido como mainstream (ainda que seja um mainstream europeu...).

Aposta arriscada

Criado em outubro de 1986 pelo roteirista Tiziano Sclavi, Dylan Dog - pronuncia-se Dilan, com a primeira sílaba tônica, e não Dailan... -, ele representou a primeira série de terror a ser publicada pela editora de Sérgio Bonelli, o maior editor de quadrinhos na Itália, responsável por perenes sucessos editoriais como Tex e Zagor, entre outros. Na ocasião, a nova personagem representou uma aposta arriscada da editora, que ainda não se tinha aventurado nesse tipo de narrativas; no entanto, mostrou-se também uma iniciativa bem-sucedida, na medida em que tanto o público como a crítica especializada tomou-se rapidamente de entusiasmo peo herói, garantindo-lhe um sucesso quase instantâneo e levando-o, em pouco tempo, ao topo da lista de mais vendidos na Itália (chegando a atingir, em alguns momentos, tiragem de quase um milhão de exemplares ao mês).

Muito desse sucesso talvez se deva ao aspecto gráfico do gibi, em que a utilização do preto e branco salienta uma atmosfera sempre um pouco opressiva, à qual são familiares os elementos incomuns e finais que, propositadamente, nem sempre amarram todas as pontas da trama, deixando aos leitores a obrigação de complementá-las em sua imaginação. São, em geral, histórias de caráter esotérico, buscando inspiração nas narrativas góticas e com freqüência utilizando uma linguagem poética.

Graficamente elaborado pelo desenhista Angelo Stano a partir da imagem do ator inglês Rupert Everett - que atuou em filmes como Princess Daisy (1983), Far pavillions (1984), Cronaca di uma morte annunciata (1987) e My best friends wedding (1997) -, o Investigador do Pesadelo é um ex-policial da Scotland Yard que decidiu trabalhar de forma independente, dedicando-se a casos que fogem da competência das forças policiais constituídas. Morando em Londres, ele parece estar em um dos locais mais apropriados para isso, pois a terra da rainha Vitória é famosa pelos seus fantasmas, crimes não desvendados e criaturas misteriosas, que se mesclam ao fog londrino e desaparecem nas charnecas inglesas. É principalmente nesse ambiente misterioso que Dylan desenvolve suas investigações, dedicando-se, nas horas vagas, a seus dois hobbies prediletos, a montagem de navios em miniatura e o clarinete.

Assistentes e inimigos

Em suas aventuras, é acompanhado por Groucho, seu secretário, criado, mordomo ou amigo, que representa o papel do bufão, atuando como válvula de escape ao herói e contraste para o ambiente sério da maioria das aventuras. Trata-se de uma figura tradicional nas histórias em quadrinhos italianas, cujo exemplo mais conhecido é provavelmente Chico, o companheiro do espadaúdo Zagor, mas que também pode incluir Kit Carson (de Tex) ou Java (de Martin Mystère). Contrariamente a seus colegas de outros títulos, no entanto, as palhaçadas de Groucho são principalmente verbais, marcadas por piadas infames, trocadilhos e jogos de palavras, bem ao estilo do comediante norte-americano Groucho Marx, cujas feições reproduz. As piadas do ajudante de Dylan trazem um sabor especial às histórias do detetive, como se pode ver por alguns exemplos abaixo:

Sabia que as mulheres enlouquecem por mim? Na noite passada, uma moça bateu por horas na minha porta, mas eu não a deixei... sair! (Em O despertar dos mortos-vivos, p. 13)

A notícia de que Mansell se recusou a correr numa pista muito curta porque tem medo de curto-circuito não é nada perto disso! Temos que mandar uma nota pros jornais... um está bom ou prefere um ? (Em A história de Dylan Dog, p. 7.)

Sempre esqueço que Nova York está atrasada em relação a Greenwich porque a América foi descoberta muito tempo depois! (Em Cagliosto, p. 22.)

Escritório de Dylan Dog! Se tem um monstro para matar, estamos às ordens! Se você é um monstro, podemos sugerir um ótimo cirurgião plástico! (Em Assassino, p. 43)

Sabem qual é o método errado pra puxar papo com a mulher invisível? Dizer eu já te vi em algum lugar! (Em Entre a vida e a morte, p. 21)

Vou como um raio, como disse a corrente elétrica entrando em curto (Em Um dia maldito, p.15)

Sem dúvida, o assistente do herói constitui-se, assim, em uma atração à parte. Mas não menos interessante é a galeria de seus inimigos. Em seus quase vinte anos de carreira, Dylan enfrentou vampiros, lobisomens, fantasmas, bruxas, seres extraterrenos e assassinos seriais, além de trabalhar também em casos mais banais que envolveram violência doméstica sob as mais variadas formas, racismo, paranóia, etc. No entanto, pode-se dizer que a maioria de seus inimigos apareceu em suas histórias apenas uma vez, em geral encontrando um final violento ou inusitado ao término da narrativa. Poucos são os inimigos que retornaram ou que mantiveram com o protagonista um embate constante, com a balança tendendo para um ou outro lado nos vários encontros. Nesse aspecto, destaca-se o Dr. Xabaras, um cientista excêntrico que é, na realidade, o pai do protagonista, e a própria Morte, que, caracterizada na versão medieval do esqueleto com capa e foice, enfrentou-o diversas vezes.

Sucesso na Itália e percalços no Brasil

Dylan está longe de fazer parte de qualquer equipe de super-heróis. Pelo contrário, apresenta diversas limitações que esses seres há muito sublimaram: sofre de vertigem e de claustofobia, não viaja de avião e só consegue acertar uma bala em algum bandido se seu auxiliar lhe jogar o revólver, pois ele raramente anda armado. Além disso, o Investigador do Pesadelo tem a incorrigível mania de se apaixonar por suas clientes, normalmente mulheres belas e misteriosas que lhe trazem muito mais problemas do que prazeres. Sob certos aspectos, é um ingênuo; sob outros, um romântico, um sonhador, um idealista. E talvez também esteja nessas características humanas muito da razão de seu sucesso junto aos leitores, um sucesso que continua até hoje na Itália, onde foi e continua sendo publicada uma grande variedade de títulos da personagem. A Serie Regolare já ultrapassou 200 números e tem duas republicações mensais, desde 1990. Várias publicações de periodicidade anual também foram lançadas pela Bonelli: a Speciale, com 16 números até 2002; o Albo gigante, 11 números publicados; o Almanacco della paura, 12 números; o Maxi Dylan Dog, 5 números; e diversos álbuns ou publicações isoladas lançados por editoras como Glamour, Simulmondo Adventures, Comic Art e Vari. Além disso, o detetive também foi motivo para jogos de computador, textos acadêmicos e diversas exposições, sempre muito disputadas.

No Brasil, a trajetória de Dylan Dog, infelizmente, não apresenta o mesmo sucesso que em seu país de origem. Ele surgiu no país pelas mãos da Editora Record, durante a relativamente breve empreitada da editora carioca pelo inconstante universo da publicação regular de histórias em quadrinhos, acompanhando outras personagens da Bonelli Comics, como Zagor, Martin Mystère e Nick Raider. Apesar das boas intenções, no entanto, a primeira investida brasileira de Dylan Dog durou apenas onze números (de setembro de 1991 a agosto de 1992, trazendo suas onze primeiras aventuras), além de um especial com Martin Mystère (publicado em janeiro de 1992), sendo prematuramente encerrada devido à crise econômica que grassou no país como resultado dos descaminhos da administração Collor.

Depois dessa passagem meio traumatizante por terras brasileiras, o herói demoraria nove anos para aqui retornar, surgindo de forma meio capenga em uma minissérie de seis números publicada pela Editora Conrad de outubro de 2001 a maio de 2002, qualquer idéia de continuidade sendo colocada de lado pelo baixo retorno de vendas.

Felizmente, no entanto, o término da minissérie não representou o fim da carreira do Investigador do Pesadelo na indústria de quadrinhos brasileira. Alguns meses depois, a Editora Mythos, que já publicava com sucesso as epopéias do cawboy Tex, no Brasil, resolveu ampliar seu investimento em revistas provenientes da indústria de fumetti e iniciou a publicação das histórias de Dylan Dog em gibi mensal próprio. Após alguns momentos de publicação meio titubeante, em que teve que assumir uma periodicidade bimestral (de janeiro a julho de 2003), o título parece ter adquirido alguma estabilidade em bancas, para gáudio dos seus inúmeros admiradores no país. Ao final do mês de outubro de 2003, ao lançar a história O castelo do Medo, a atual editora do herói ultrapassou as anteriores em número contínuo de publicações, atingindo o número 12 (um a mais que a editora Record), com boas perspectivas de continuidade.

Múltiplas referências

Os leitores mais jovens, que conhecem o investigador pela revista atual, estão tendo a oportunidade de vê-lo em episódios lançados originalmente em épocas diferentes, não obedecendo a continuidade normal da série italiana (tal como acontece com Martin Mystère e Nick Raider, pela mesma editora); ao contrário, os episódios são selecionados pelos editores brasileiros, em função de sua qualidade ou temática especialmente singular. A medida se justifica e é perfeitamente viável, uma vez que as histórias de Dylan Dog não ocorrem obedecendo a uma continuidade narrativa, como acontece com as aventuras dos super-heróis da Marvel e da DC Comics: ainda que, eventualmente, alguns coadjuvantes possam retornar de tempos em tempos, isto, em geral, não prejudica o entendimento das tramas. Afina, cada episódio tem independência em relação aos demais, podendo ser desfrutado em igual medida por leitores que ainda não tiveram qualquer contato com o título. Mesmo nos casos de personagens retomadas de histórias anteriores, a editora brasileira tem tomado o cuidado de informar o leitor sobre esses aparecimentos, esclarecendo o que havia acontecido anteriormente (houve uma escorregadela involuntária no número 3, O túnel do horror, em relação ao Dr. Hicks, mas ela foi devidamente corrigida no número 7, publicando-se seu primeiro aparecimento, Entre a vida e a morte, com as devidas explicações).

Além do fator acima mencionado, a decisão da Editora Mythos também se sustenta no fato que, sendo uma série com quase vinte anos de ininterrupta publicação em seu país, Dylan Dog com certeza apresenta altos e baixos em termos de qualidade, permitindo uma seleção que possibilite ter acesso à nata das histórias. Até o momento, pouco se pode reprovar à decisão dos editores brasileiros, pois os episódios já publicados permitem uma boa perspectiva das características peculiares dessa criação genial de Tiziano Sclavi, características que fazem dela um quadrinho tanto mainstream como de autor (o que, se fossem outras as circunstâncias e outra a personagem, poderia ser considerado uma anomalia...). Nelas, pode ser presenciada a farta utilização de elementos cinematográficos (presente nas numerosas citações ao filme Psicose em Nas profundezas, número 7 da série atual; a correlação com The abominable Dr. Phibes em Um dia maldito, número 8; e a nítida inspiração buscada no filme Coma, em Entre a vida e a morte, número 7) ou mesmo de outros quadrinhos (como acontece em Cagliosto, número 2, em que Sir Francis é flagrantemente modelado no estilo dos quadrinhos de linha clara e na qual também participam Martin Mystère, Java e Diana, em rápida aparição) e obras da literatura (A ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells, número 10, e Os meninos do Brasil, de Ira Levin, no número 3). Além disso, as aventuras já publicadas são fartas na abordagem a questões psicológicas (o complexo de Édipo em Nas profundezas ou as mensagens subliminares em Canal 666, número 11), paranormais (novamente, em Entre a vida e morte) e religiosas (o Golém judaico, no episódio Caos em Londres, publicada no número 6). Algumas tramas são muito mais que narrativas comuns, envolvendo-se com a linguagem poética, como acontece em O longo adeus, no número 5, toda em feedback, com o protagonista recordando um amor da adolescência, para apenas citar uma delas.

Todas essas características, ainda que brevemente apontadas, são suficientes para fazer da leitura dos quadrinhos de do Investigador do Pesadelo uma aventura em si mesma, em que sensações contrastantes alternam-se, passando do puro assombro para a mais genuína fascinação, de uma maneira que consegue satisfazer os gostos mais exigentes. Dylan Dog é, com certeza, um dos melhores títulos de quadrinhos que atualmente se publica no Brasil. Esperemos que ele tenha uma vida longa entre nós.

Leituras complementares:

Dylan Dog@uBC - uBC Fumetti. Disponível em http://www.ubcfumetti.com/dylandog/
Dylan Dog Online. Disponível em http://www.dylandogonline.com/index2.htm
GAUMER, Patrick; MOLITERNI, Claude. Dylan Dog. In: ---------. Dictionnaire mondial de la bande dessinée. Paris : Larousse, c1997. p. 247-248