A variedade de mangás e animes no Japão é enorme -- aqui no Ocidente temos acesso somente à pontinha do iceberg. Enquanto aqui é mais comum recebermos um número maior de obras do tipo shonen (para homens jovens), shoujo (para mulheres jovens) ou seinen (para homens adultos), do outro lado do mundo existe espaço para todos os tipos de público possíveis, abraçando qualquer tipo de história, inclusive as de temática LGBTQI+.
O país pode até ser conhecido pelo seu conservadorismo, mas o Japão é um dos pioneiros quando se fala em quadrinhos focados em histórias com personagens LGBTQI+ e tem uma quantidade considerável de diversidade em suas tramas.
Os quadrinhos com histórias de homens gays, conhecidos como boys love, existem há décadas. Eram feitos para as leitoras mulheres e suas histórias eram parecidas com as demais tramas para esse público, mas trocando os casais heterossexuais por homens. Com o tempo, as histórias foram mudando e deixando de lado clichês que estereotipavam as relações, como sempre ter um personagem frágil como o uke (termo usado para o “passivo” de uma relação homoafetiva) e alguém mais viril como seme (no caso, o “ativo”).
Publicado no Brasil em meados dos anos 2000, o mangá Gravitation (lançado pela editora JBC) é considerado um boys love clássico por ter ajudado a desmistificar muitos preconceitos que as pessoas nutriam por histórias protagonizadas por personagens gays -- mas, se lido com um olhar de 2020, é possível ver muitos pontos… problemáticos.
JBC/Divulgação
Em Gravitation, a autora Maki Murakami mistura o relacionamento conturbado dos jovens Shuichi e Eiri, ao mesmo tempo em que a banda do primeiro tenta conquistar prestígio musical. É um mangá de extrema importância por popularizar relacionamento de protagonistas do mesmo sexo, mas pode parecer datado para quem for conhecer agora.
Por sorte temos muitos mangás recentes com boas histórias de boys love, inclusive no Brasil. Lançado recentemente pela NewPOP Editora, Given tem alguns temas parecidos com Gravitation e conta a história de dois jovens que se conectam através da música e criam laços afetivos fortes o suficiente para enfrentar problemas do passado.
Uma das editoras brasileiras que mais publica mangás e light novels com histórias centradas em personagens LGBTQI+, a NewPOP tem também o mangá Joy, da autora Etsuko, que mostra uma visão bem natural de personagens homossexuais em uma trama sobre um autor de mangá e sua relação com um assistente. A recepção do público foi tão boa que a NewPOP já anunciou a publicação da continuação.
Se as histórias boys love costumam ser voltadas ao público feminino, há também aquelas voltadas para o público homossexual. Os mangás bara existem há décadas com tramas focadas apenas em relações sexuais de homens, e um nome muito importante nessa corrente é o do mangaká Gengoroh Tagame. O autor de 56 anos tem uma vasta produção de quadrinhos eróticos, mas ganhou renome mundial ao publicar o mangá O Marido do Meu Irmão (lançado no Brasil pela editora Panini).
O título foi lançado em uma revista destinada ao público adulto masculino, e debateu como poucas obras a questão do preconceito contra homossexuais. Na história, o personagem Yaichi tem um irmão gêmeo homossexual que se afastou da família para se casar no Canadá, mas acaba morrendo depois de um tempo. Após a morte do irmão, Yaichi passa a conviver com seu cunhado Mike e vai percebendo e questionando os próprios preconceitos a respeito da orientação sexual do falecido irmão.
Com tanta variedade assim, o mercado japonês ainda tem espaço para quadrinhos sobre mulheres lésbicas. Os mangás yuri são, assim como os boys love, produções para o público feminino e pegam emprestadas várias características estéticas das produções para mulheres no Japão.
NewPOP Editora/Divulgação
No Brasil esse tipo de mangá demorou um pouco para chegar. O primeiro título foi lançado somente em 2017, e foi Sunset Orange (pela NewPOP Editora). Desde então, a editora apostou em outras séries sobre o tema. Dois dos mangás yuri de maior sucesso no mundo foram lançados aqui no Brasil pela editora NewPOP, são eles Citrus (de Saburouta) e Minha Experiência Lésbica com a Solidão (de Kabi Nagata).
Citrus é a clássica história de uma colegial indo para uma escola feminina e descobrindo sua sexualidade com outras garotas, já Minha Experiência Lésbica com a Solidão é um mangá autobiográfico e premiado com dois temas em especial: a homossexualidade e a depressão.
Os ainda poucos animes dedicados aos LGBTQI+
Geralmente, os animes no Japão são adaptados de um mangá de sucesso, seja para aumentar as oportunidades de ganhar dinheiro com merchandising, seja para divulgar ainda mais o próprio mangá. E se, em números, a produção de mangás focados em relações e personagens LGBTQI+ é até grande na comparação com outros países, esse ainda é um nicho sem tanta força quanto um Demon Slayer ou Naruto da vida. Mesmo assim, alguns mangás conseguiram “romper” essa barreira e ganharam animações de muito sucesso.
Citrus, o já citado mangá yuri voltado ao público feminino, parece ser uma exceção à regra. Publicado em uma revista de temática LGBTQI+, o título foi finalizado com 10 volumes, um tamanho pouco comum para histórias desse segmento. O estúdio Passione produziu um anime de 12 episódios para Citrus (está disponível no Brasil pela Crunchyroll) e teve muito sucesso na empreitada. Exibido no começo de 2018, o anime cativou por trazer uma história não tão comum em animação e ajudou a divulgar o mangá.
O também popular mangá Given ganhou uma animação em 2019, produzida pelo estúdio Lerche, que foi uma das grandes sensações do ano passado. A trama ganhou uma adaptação fiel ao mangá original de Natsuki Kizu, usando até os extras dos quadrinhos para complementar a história. E a grande apresentação musical da série foi um dos pontos altos dos animes neste ano que passou. A recepção do público foi tão boa que já está previsto o lançamento de um filme animado continuando a história com base no mangá.
Given/Lerche/Reprodução
Com o sucesso recente desses animes com relações homoafetivas, é de se esperar que mais histórias assim sejam adaptadas para animação no futuro. Sua importância está não só na forma natural com que tratam seus temas, mas também em atrair a atenção de um público amplo, que transcende até a comunidade LGBTQI+.