Os quadrinhos da Turma do Archie vão muito além dos dramas e romances de Archie, Betty, Jughead e os outros: as HQs contam com os mais variados personagens como Sabrina Spellman, a bruxa da cidade vizinha à Riverdale. Fora dos Estados Unidos, a menina ganhou fama ao ter suas histórias adaptadas na série Sabrina, a Aprendiz de Feiticeira, que combinava o descobrimento das habilidades mágicas da protagonista com seu amadurecimento, tudo com tom leve e frequentemente irônico, por conta dos comentários do gato Salem. Contudo O Mundo Sombrio de Sabrina, da Netflix, não se parece nada com isso. O primeiro trailer pega o mesmo entusiasmo da adolescente, mas o contrasta com um mundo muito mais fúnebre do que a série dos anos 90. Acontece que esse mesmo choque já acontece nas HQs.
The Chilling Adventures of Sabrina/Archie Horror/ComiXology/Reprodução
Histórias de terror não são novidades para os quadrinhos da Turma do Archie, mas até 2015 elas não tinham casa própria, dividindo as edições com contos mais leve. A editora resolveu isso com a criação do Archie Horror, selo pensado para desvirtuar tudo de puro do grupo. Sabrina, que sempre teve uma pegada mais aterrorizante, era a escolha perfeita para finalmente aproveitar todo potencial da personagem. Após um teste inicial com Afterlife with Archie, onde a cidade é tomada por um apocalipse zumbi, a bruxa estrelou The Chilling Adventures of Sabrina.
A trama é ambientada no ano de 1966 e coloca Sabrina, aos 16 anos de idade, descobrindo a vida de uma adolescente normal - algo que até então nunca tinha experimentado. Isso envolve ir para o colégio, fazer amigos e se apaixonar. O que complica é sua criação, sendo filha de mãe humana com um pai bruxo, do alto escalão da Igreja da Noite. Assim, ela é forçada a escolher entre tornar-se uma bruxa ou viver sem magia.
The Chilling Adventures of Sabrina/Archie Horror/ComiXology/Reprodução
A saga se afunda no simbolismo profano de pentagramas e rituais bizarros, puxando muito do ocultismo real. O período não é mera coincidência: 1966 foi o ano em que Anton LaVey inaugurou a Igreja Satânica (Church of Satan) nos Estados Unidos, dando início ao processo de escrever a base de sua religião alternativa no que viria a ser chamada de Bíblia Satânica, publicada no fim da década. O movimento ganhou espaço na mídia da época, com diversos rumores e escândalos envolvendo de rituais, sequestro de crianças e abuso sexual. Isso, combinado com os assassinatos do culto liderado por Charles Manson em 1969 e mais uma série de tragédias ligadas ao ocultismo, despertou uma histeria coletiva nos EUA chamada de "Satanic Panic", muito forte em 1980 e 1990.
Nas páginas de Sabrina, o culto de LaVey é representado através da Church of Night - liderada por Edward Spellman, pai da protagonista. O grupo serve diretamente à Satã e pratica rituais em seu nome, escondidos do restante da humanidade. O conflito central de Sabrina vêm daí: ainda que sonhe em ser uma garota normal, sua família está fortemente ligadas às Trevas graças à Hilda e Zelda, tias com quem vive em um cemitério. Devotas ao culto, a dupla até tenta conceder liberdade à garota, porém a fé e a prática da magia negra interferem no cotidiano mundano de Sabrina.
Essa dualidade cria um contraste muito divertido entre o tom leve do cotidiano com o teor pesado da ambientação - algo que parece que a Netflix colocará em primeiro plano. Eventualmente, a trama toma um rumo mais sombrio com a chegada da vilã Madame Satã - mas o desenrolar dos eventos, combinado com bom desenvolvimento dos personagens, torna a narrativa interessante e frequentemente brutal.
O visual também dá força ao texto, deixando os traços fofos e arredondados de Archie de lado por algo saído diretamente dos anos 40. Isso dá um ar retrô que combina com o período e tom da história, lidando bem com a sensualidade típica de contos de bruxaria e também com as pontuais e afiadas cenas de violência gráfica.
Nos Estados Unidos, The Chilling Adventures of Sabrina continua sendo publicada em um ritmo estranho - ainda mais com a editora se ocupando com muitas outras séries derivadas da Archie Horror, como uma onde Jughead é um lobisomem e Veronica é uma vampira (com um confronto entre os dois já anunciado). Enquanto a publicação não é normalizada - ou chega ao Brasil - o jeito é torcer para que a adaptação da Netflix entregue a mesma mistura de terror com drama adolescente que torna a HQ tão marcante.