[Este artigo foi publicado originalmente em setembro de 2004]
Uma criança que fala aquilo que pensa e por isso coloca os adultos em situação embaraçosa. Uma menina de opinião, com uma visão bastante crítica da realidade. Uma sonhadora. Uma contestadora. Uma cínica.
Mafalda é tudo isso e um pouco mais. Em termos gerais, é apenas uma menina que vive na Argentina dos anos 1960, com pais normais de classe média, que vai à escola, possui alguns amigos com quem realiza as brincadeiras normais de toda criança e viaja com a família para a praia no período de férias. No entanto, ela é muito mais do que esta simples descrição pode passar. Acima de tudo, representa uma das personagens mais fascinantes que já apareceram nas histórias em quadrinhos latino-americanas, personificando a insatisfação frente a uma realidade social e econômica que, mais do que respostas, apenas desperta perguntas e inquietações. Ainda assim, nesse sentido, é muito mais que uma criança que apresenta uma postura de adulto, como tantas outras que já surgiram nos quadrinhos: ela é a porta-voz de todas aquelas questões que os leitores de suas tiras gostariam de ter a coragem de colocar para o mundo, mas que nem sempre conseguem fazê-lo.
Vendendo eletrodomésticos
Criada por Joaquín Salvador Lavado, o Quino, ela surgiu em um momento especial da realidade de seu país, a Argentina, exatamente no dia 29 de setembro de 1964, quando os ventos de uma ainda incipiente, incerta - e, infelizmente, pouco duradoura -, democracia liberal pareciam soprar com mais intensidade na região; foi herdeira de uma longa tradição de humor gráfico no país, aliada à influência dos quadrinhos intelectualizados de autores como Charles Schulz e Jules Feiffer.
A gênese da personagem já enveredou pelo espaço da lenda: encomendada a seu autor pela empresa Agens Publicidad para encabeçar uma campanha publicitária para uma marca de eletrodomésticos, em que o M do nome da protagonista e de todas as demais personagens deveria equivaler ao da empresa, Mansfield. A idéia acabou não sendo realizada, mas a personagem foi aceita para publicação semanal na revista Primera plana, onde ficou até março de 1965. Dali, a pequena menina questionadora passou para o diário El Mundo, ali permanecendo até o encerramento do jornal, em 22 de dezembro de 1967. Assim se iniciou uma carreira vitoriosa e ininterrupta de publicações em jornal, álbuns, livros, coletâneas e desenhos animados, tanto em seu país de origem como em várias outras partes do mundo. No entanto, a criação de tiras encerrou-se em 1973 - com um total de 1928 publicadas -, quando seu criador, alegando que ela já havia cumprido aquilo para que havia sido criada, deixou de elaborar novas aventuras para a pequena menina e seus amigos, passando a se dedicar somente à elaboração de charges. No entanto, apesar dessa decisão, ele ainda retornou à personagem na realização de um cartaz para a Declaração dos Direitos da Criança, a pedido da UNICEF, em algumas campanhas educativas e também para elaboração de um selo postal.
Perguntas bombásticas
Muito existe a dizer sobre o mundo de Mafalda. Muito a ser analisado, tão complexas são suas inquietações e as relações que desenvolve com a família, com os amigos e com o mundo em que vive. Trata-se de uma história em quadrinhos povoada principalmente por crianças, mas não é exatamente uma série para crianças. Embora os pequenos possam ler as tiras de Mafalda e se identificar com as preocupações e desencontros de seu mundo infantil, o público da menina é mesmo composto por leitores adultos, que conseguem - ou, pelo menos, tentam... - entender sua posição em relação às relações de poder na sociedade e à opressão dos mais fracos pelos mais fortes. Pois em Mafalda nada é simples: quando pensamos que sua posição está firmada sobre um determinado assunto, ela nos surpreende com um aspecto inusitado da questão, com uma pergunta bombástica, com uma expressão de enfado, de asco ou de pena frente a uma situação ou personagem específicas. O desenvolvimento da tira faz aos poucos com que ela evolua, amadureça em sua visão de mundo, perca algumas de suas características - em geral, as mais infantis -, que são assumidas pelas demais personagens.
Mafalda e sua turma
Não se trata de um mundo muito amplo. Embora englobando o mundo inteiro, a realidade mais próxima de Mafalda é circunscrita basicamente a seus pais, seu irmão e alguns amigos, cada um deles representando um determinado aspecto da sociedade:
Os pais são os típicos representantes de uma classe média espezinhada. O pai, trabalhador de uma empresa de seguros, de pretensões modestas, amante da jardinagem e dedicado à família, é um dos alvos preferenciais da menina; a mãe, dona de casa, dedicada ao lar, atarefada com as tarefas cotidianas é, de uma certa forma, desprezada pela filha por sua opção burguesa e sua submissão a um papel social que a menina abomina. É com eles que Mafalda tem os seus maiores embates, destacando-se a disputa pela aquisição de um aparelho de TV, sonho consumista a que o pai se opõe fortemente, mas ao qual tem que se dobrar devido às pressões da filha e de seus amigos - não ter televisão representava, à época, ser um pária na sociedade, ser encarado como um elemento estranho e deslocado. Neste caso, numa interessante inversão dos papéis definidos por Umberto Eco, era a menina a integrada e o pai o apocalíptico, gerando uma interessante discussão sobre o papel dos meios de comunicação de massa na sociedade contemporânea. | |
Felipe, morador do mesmo prédio e primeiro amigo de Mafalda, aparece na tira em 19 de janeiro de 1965. É aquele com o qual Quino, seu criador, mais se identifica. Baseado em um seu amigo de infância, Felipe é sonhador, inseguro do futuro, apaixonado por Brigitte Bardot, a musa dos anos 60. Leitor entusiasmado das histórias em quadrinhos do Cavaleiro Solitário, acredita em tudo que lê nos jornais. Tem idéias grandiosas, que são sempre frustradas pelos amigos, o que invariavelmente o faz ficar amargurado. É o contraponto da protagonista. |
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Manolito aparece na tira em março de 1965. É filho de Don Manolo, imigrante espanhol dono de uma mercearia, de quem herdou os traços fisionômicos e a vocação para o comércio. Seu grande sonho é crescer e ser dono de uma cadeia de supermercados. Materialista, caracteriza-se por sua brutalidade, pela descrença quanto às coisas do espírito - a ele não lhe agradam os Beatles, mito da geração jovem da década de 60 -, tendo uma visão prática do mundo. Admira os norte-americanos, por sua riqueza, e está sempre imaginando formas de se tornar igual a eles (do que não se excluem artimanhas para fazer com que os amigos comprem mais coisas no armazém de seu pai...). Apesar de tudo, no entanto, é um trabalhador abnegado, o que não impede que em várias ocasiões demonstre, até mesmo de forma ingênua, uma grande capacidade de afeição pelos demais personagens da série. |
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Susanita surgiu no mesmo ano que Manolito. Susana Clotilde (ou Susana Beatriz) representa a mulher burguesa que almeja a tranqüilidade de uma família bem constituída, filhos para criar, um marido para cuidar e amigas com quem passar as horas de enfado. Sempre fora da realidade, busca não se envolver com os problemas do mundo e prende-se às aparências. Enquanto Mafalda personifica a mulher liberada que busca se colocar em pé de igualdade em relação ao sexo oposto, Susanita é a visão tradicional do papel da mulher na sociedade, o que ocasiona freqüente atrito entre as duas meninas. |
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Miguelito é a inocência personificada, alguém sempre em busca de compreender o mundo que o cerca e admirado pelas contradições existentes, que não sabe explicar. Surge repentinamente na praia, durante uma viagem de férias da protagonista, agregando-se posteriormente à tira. |
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Guille é o irmão menor de Mafalda, nascido formalmente em março de 1968, quando a tira se transferiu do jornal El Mundo para o semanário Siete Dias. Assume um pouco da relação contestatória da irmã em relação aos pais, passando a ser o transgressor das normas familiares. Mais do que um representante do embate pais e filhos, personifica, em sua relação com Mafalda, a diferença de opiniões entre gerações separadas por apenas alguns anos. A partir do aparecimento do irmão, a protagonista passa a representar a crítica ao mundo constituído, fechando-se na reflexão abstrata, na visão realista da sociedade em que vive, e assumindo uma agudeza conceitual à qual não cabem mais os sorrisos e brincadeiras que eram tão comuns antes de se tornar a filha mais velha. Nesse novo papel, ela tem que responder para o irmão as mesmas perguntas embaraçosas que antes colocava aos pais. |
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Libertad é a última a aparecer na tira, surgindo em fevereiro de 1970. Também conhece Mafalda durante suas férias de verão. Filha de pais hippies, pequena e contestadora, é uma metáfora da própria Liberdade, um permanente incômodo para todos. Dona de desfaçatez surpreendente, é a válvula de escape para idéias que estavam no ar durante o período e às quais Mafalda não podia dar voz, devido a suas características esquemáticas. |
Obra extensa e variada
Instalando-se em Buenos Aires em 1954, logo conseguiu espaço na revista Esto es, onde iniciou uma vitoriosa e ininterrupta carreira de humorista, que prosseguiu em outras publicações. Em 1963, publicou seu primeiro livro de humor - Mundo Quino, - uma recopilação de sua produção de humor gráfico até o momento. Mafalda é sua personagem mais conhecida, mas representa apenas um aspecto de seu trabalho artístico, que fez dele um dos mais respeitados humoristas gráficos do mundo, com seu trabalho difundido em vários continentes e granjeando-lhe vários prêmios. Além das tiras de Mafalda, recompiladas em dez álbuns e no livro Toda a Mafalda, entre seus trabalhos destacam-se, também, A mí no me grite, Déjenme inventar, Quinoterapia, Que mala es la gente!, entre outros. No Brasil, sua obra é publicada pela Editora Martins Fontes.
Leituras recomendadas:
MAFALDA ONLINE. Disponível em: http://www.geocities.com/SoHo/Museum/5495/main.html
QUINO: Página Oficial. Disponível em: http://www.clubcultura.com/clubhumor/quino/espanol/
SASTURAIN, Juan. Mafalda em três cuestiones e Mafalda sin Libertad. In: El domicílio de la aventura. Buenos Aires: Colihue, 1995. p.167-177.