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Walt Kelly e Pogo

Walt Kelly e Pogo

13.12.2000, às 00H00.
Atualizada em 12.11.2016, ÀS 23H00
É praticamente uma regra universal: a grande maioria das histórias em quadrinhos que se destacaram no gênero, principalmente as norte-americanas, apareceram, de início, em jornais e depois, em um momento ou outro, passaram a ser publicadas também em revistas, nos comic books ou gibis, como os chamamos aqui. As diversas personagens criadas por Walter Crawford Kelly, Jr., um grupo de animais que interage com o pequeno gambá Pogo, sua mais famosa criação, constituem a exceção que justifica a regra. De fato, Pogo foi inicialmente veiculado, a partir de 1943 na revista Animal Comics, editada pela Dell Comics, e só alguns anos depois iria parar nas páginas dos jornais.
Albert, o jacaré

Por ocasião de seu debut nas páginas das revistas, não era Pogo ainda o protagonista das histórias, mas sim o seu companheiro, o jacaré Albert, que então dividia o estrelato com um garoto afro-americano de nome Bumbazine. Ambos, inclusive, davam nome à série, naquela época batizada como Bumbazine and Albert the Alligator. No entanto, como Popeye havia feito antes dele em Thimble Theatre, o animalzinho logo roubou a cena e assumiu o seu merecido lugar como o centro das atenções. Sua popularidade foi então num crescendo constante, a ponto de ele ser inclusive lançado como candidato à presidência dos Estados Unidos em 1952, atingindo expressiva aceitação dos eleitores...

MAIS DO QUE ANIMAIS DIVERTIDOS

Howland, a coruja
A tartaruga Churchy

Pogo, é claro, caracteriza-se como uma animal strip – denominação que recebem, nos Estados Unidos, as tiras em quadrinhos sobre animais. No entanto, não pode ser encarada como uma representante comum desse gênero tão popular de histórias em quadrinhos. Seria um erro, por exemplo, tentar equipará-la às histórias das personagens da Disney ou da Warner. Nela, além dos dois protagonistas, Pogo e Albert, um grupo de personagens animais - como a coruja Howland Owl, a tartaruga Churchy La Femme, o mastim Beauregard Bugleboy e o porco-espinho Porkypine -, buscam ir além de proporcionar simples entretenimento a seus leitores, inserindo as temáticas sociais e políticas contemporâneas em seu microcosmo animal. Trata-se, enfim, de uma das histórias em quadrinhos mais intelectualizadas já produzidas para jornais. Por esse motivo, a tira foi sempre muito reverenciada por escritores, artistas e eruditos de todos os matizes, ascendendo à posição de produto cult como poucos outras histórias em quadrinhos conseguiram.

O mastim Beau
Porkypine, o porco-espinho

Seria pretensioso, talvez, afirmar que esse status diferenciado tenha sido conscientemente almejado por Walt Kelly desde o início de seu trabalho com quadrinhos. Na realidade, sua ligação com as personagens animais já vinha desde a época em que havia trabalhado como animador nos Estúdios Disney, onde permaneceu de 1936 a 1941, tendo a oportunidade de atuar na produção de algumas obras primas do cinema de animação, como Fantasia (1940), Pinocchio (1940) e Dumbo (1941). Assim, suas personagens, de uma certa forma, apenas deram continuidade a essa atividade, refletindo sua visão peculiar de mundo e o papel que pretendia desempenhar no mundo dos quadrinhos.

UM AUTOR VERSÁTIL

As aventuras de Pogo e seus amigos mergulharam nas páginas dos jornais, em tiras diárias, no ano de 1948, quando Kelly foi convidado para ser o editor de arte do recém-criado New York Star, um jornal de tendência liberal que buscava ser independente de seus anunciantes. Nessa publicação, o autor realizou uma série inesgotável de trabalhos de arte, desde os cabeçalhos das colunas até as charges políticas e desenhos publicitários, além da tira diária com suas personagens. O jornal, no entanto, durou apenas sete meses, ao fim dos quais Kelly decidiu oferecer suas tiras para distribuição nacional, buscando atingir um público maior.

Distribuído pelo Post-Hall Syndicate, Pogo rapidamente chamou a atenção do público, sendo veiculado em um número significativo de jornais no país inteiro. Ao final de cinco anos, Kelly já tinha seu trabalho aparecendo em mais de quinhentos jornais, uma cifra que outros quadrinhistas – como, por exemplo, seu contemporâneo Charles Schulz –, levariam muito mais tempo para atingir.

UMA VISÃO NATURALISTA

O sucesso de Pogo talvez se deva, também, à própria visão naturalista embutida nas personagens. Vivendo no pântano de Okefenokee, na Georgia, todos estão plenamente satisfeitos com seu papel no mundo animal, seguindo uma lógica toda própria. Desta forma, diferenciam-se das demais tiras de animais antropomorfos, pois não intentam simplesmente reproduzir os comportamentos humanos. Pelo contrário, no mundo de Pogo e seus amigos, as regras da natureza continuam prevalecendo e, como enfatiza Norman Hale, Albert, o jacaré, apesar de sua inegável amizade com o pequeno gambá, jamais deixará de imaginar como seria um prazer inigualável poder ter o amigo, algum dia, como prato principal do seu almoço ou jantar. Isso, absolutamente, não gera neste último qualquer tipo de ressentimento contra Albert: afinal, faz parte da natureza dos jacarés se alimentarem de animais menores como Pogo...

SÁTIRA POLÍTICA

Por outro lado, um aspecto que também pode explicar a popularidade dessa tira cômica é a paulatina inserção de questões políticas de seu tempo nas aventuras das personagens. Desta forma, fugiu da sátira social de caráter mais amplo e da pantomima nonsense que caracterizaram os seus primeiros anos. Isto agradou em cheio o público leitor que, cada vez mais predominantemente adulto, encontrava suas preocupações políticas espelhadas nas personagens e se identificava com elas. Um feito surpreendente, sem dúvida, principalmente quando se considera que Kelly começou a traçar suas alegorias no momento mesmo em que o seu país mergulhava em um dos períodos mais negros de sua história. Foi um tempo de intolerância política e de difícil convivência de visões contrárias no seio da sociedade norte-americana, a época que ficou tristemente conhecida como caça às bruxas ou macarthysmo. Pelas histórias de Pogo e seus amigos, travestidos como animais dos mais variados tipos, passaram figuras notórias do mundo político. Até mesmo o famigerado senador Joseph McCarthy, ainda no auge de seu prestígio, foi nela duramente atingido, sendo retratado como um gato selvagem de tendências ditatoriais chamado Simple J. Malarkey. O maléfico felino desencadeia um reino de terror e intimidação no pântano, visando liberá-lo de todas as impurezas ou elementos estranhos. Nos anos seguintes, por ali também passariam, devidamente caracterizados, embora não com o mesmo brilhantismo utilizado para satirizar o senador do Wisconsin, personalidades famosas como Nikita Khrushchev, Spiro Agnew, Lyndon B. Johnson, George Wallace, J. Edgar Hoover, Richard Nixon e Fidel Castro, entre outros.

MAESTRIA NA TÉCNICA DAS HQS

A contribuição de Kelly e suas personagens para as histórias em quadrinhos não se limitou apenas à sua temática e forma de abordagem de questões contemporâneas. Ele foi também um mestre no manuseio de todas as técnicas importantes dos quadrinhos, utilizando-as em sua plenitude. Nas histórias de Pogo, aquelas personagens com características especiais têm seus balões de fala expressando graficamente seus aspectos distintivos, seja pelo tipo de letras empregado, seja pela própria linguagem por eles utilizada. Da mesma forma, a relação personagens/quadrinhos foi constantemente enfatizada pelo autor, fazendo com que os elementos visuais do meio de comunicação, enquanto constituintes de seu complexo lingüístico, contracenem com o cotidiano em que transitam os protagonistas, de forma que a intertextualidade ali presente é naturalmente recebida pelo leitor. Em muitas histórias de Pogo, como relata Richard Marschall, é comum encontrar personagens que, em busca de descanso, utilizam a borda dos quadrinhos como encosto, enquanto outros, excessivamente falantes, têm que reclinar seus pescoços para evitar que suas cabeças sejam encobertas pelos balões que contêm suas palavras. Tudo isso exemplifica o domínio do autor sobre a linguagem do meio em que estava atuando, equiparando-o a grandes mestres como George Herriman e Winsor McCay.

MILITÂNCIA ECOLÓGICA

O pai de Pogo destacou-se também por sua atuação na National Cartoonist Society, da qual foi presidente em 1954, e na defesa de temas ecológicos. Freqüentemente, utilizou suas personagens para denunciar a devastação do meio ambiente como conseqüência de atitudes irresponsáveis de governo, instituições da iniciativa privada e pessoas físicas em geral. Uma das frases utilizada em uma de suas histórias tornou-se universalmente conhecida, antológica mesmo, sendo posteriormente apropriada por grupos de pressão e organizações não governamentais do mundo inteiro como slogan em defesa da ecologia: “We have met the enemy, and he is us” (“Nós encontramos o inimigo, e ele somos nós”)

No final da década de 60, Kelly, já doente, foi pouco a pouco se afastando da elaboração de Pogo, deixando a série na mão de assistentes e permitindo que ela perdesse muito de seu brilho. Faleceu em 1973, de complicações causadas pela diabetes. Pogo ainda prosseguiu por mais dois anos sua carreira nos jornais, principalmente devido aos esforços da família do autor. Sobrevive até hoje na constante reedição de compilações e antologias, que buscam prestar o devido tributo a uma das obras mais importantes das histórias em quadrinhos mundiais, que influenciou autores como Mel Lazarus (Miss Peach), Johnny Hart (B.C.) e Garry Trudeau (Doonesbury), e, além disso, garantir que outras gerações tomem conhecimento de sua verve satírica. Muito de sua sutileza, no entanto, é de difícil compreensão para os novos leitores: ao se centrar em elementos políticos de seu tempo, Pogo afastou-se da arte atemporal e inscreveu-se, em contrapartida, no âmbito do jornalismo histórico, tornando-se o retrato de sua época. O que, longe de diminuir sua importância, apenas o valoriza ainda mais.

Leituras recomendadas
HALE, Norman. All natural Pogo. New York : Thinker’s Books, 1991.
MARSCHALL, Richard. Walt Kelly (1913-1973). In: --------. America’s great comic strip artists: From the Yellow Kid to Peanuts. New York : Stewart, Tabori & Chang, 1997. p. 255-273.