"O jogo vai começar. 12 pessoas estão a caminho do inesperado". Foi assim que Pedro Bial abriu a primeira edição do Big Brother Brasil em 29 de janeiro de 2002. Com 37 câmeras espalhadas pela casa e 60 microfones cercando as conversas dos participantes, o BBB 1 teve a edição mais curta da história, durando apenas 64 dias. Agora, em 2022 e em sua 22ª edição, o programa completa seus 20 anos de existência.
O formato Big Brother surgiu originalmente em 1999, em um canal chamado "Veronica", dentro da Holanda. A referência mais clara que origina o programa é o livro clássico 1984 do britânico George Orwell, que mostra uma narrativa distópica, onde um líder autoritário mantinha sob constante vigilância toda a sua população. Outra clássica referência que serviu de inspiração para o formato foi o reality The Real World, exibido pela MTV americana a partir de 1992.
Big Brother versus A Casa dos Artistas
Desde 1999, na Holanda, o programa se mostrou como um sucesso comercial e de audiência. No ano seguinte de sua estreia, cerca de 19 países compraram o formato. Inicialmente, aqui no Brasil, um dos primeiros canais que realizou uma negociação com a empresa Endemol (dona do formato) foi o SBT. Entretanto, a emissora desistiu da compra e resolveu criar seu próprio modelo de confinamento: A Casa dos Artistas, lançado no final de 2001.
Só que nesse momento a Globo já havia comprado os direitos autorais da produtora holandesa e com isso começa a se desenrolar um embate jurídico entre as duas emissoras. "Eu e o meu marido estávamos na Itália no final de 2000, e lá estava passando o Gran Fratell, que é uma versão do Big Brother”, relembra a jornalista Cristina Padiglione.“No primeiro instante em que 'zapeamos' e paramos nesse programa a gente não conseguia parar de ver, era uma coisa muito maluca. E quando entrou a 'Casa dos Artistas' a gente falou 'olha aquele programa… é esse né?'. Na verdade, era o Big Brother e aí depois veio toda a confusão junto de 'a Globo comprou, a Globo vai exibir' e isso alimentou toda essa expectativa. O Silvio Santos também não divulgou o programa porque era um plágio realmente e logo no primeiro domingo de exibição ele bateu o Fantástico, sem avisar ninguém".
Enquanto inicialmente no Big Brother a premissa era o confinamento de pessoas anônimas, no SBT a aposta estava nos famosos. Além disso, naquele momento (como sempre) Silvio Santos não teve receios ao decidir realizar o programa do jeito que ele gostaria.
"O primeiro BBB foi engraçado, foi um contrafluxo, porque você sempre espera que a Globo vá fazer melhor, mas tudo foi aquém da 'Casa dos Artistas', e foi muito boa por ser uma primeira edição", complememta a jornalista. "Eles foram aprendendo a editar e sonorizar lá pro BBB 3… Eles demoraram um pouco para pegar o bonde. Eles foram muito na cartilha do que era o programa lá fora e foram aprendendo ao longo dos anos a trazer o programa para o Brasil, a alimentar as loucuras e ansiedades locais… foi dando uma massa brasileira para o Big Brother que não tinha na primeira edição. Ele veio muito holandês para cá, muito respeitando regras, e não tinha essa malícia que a Casa dos artistas sacou na primeira edição já".
Um bom elenco é a grande chave do jogo
Com o tempo, a Globo foi afinando o formato, mas paralelamente a isso, desde a sua primeira edição, tanto Pedro Bial, como os respectivos participantes foram deixando suas marcas pelo programa. Os termos "espiadinha" e "paredão" surgiram logo no BBB 1 e são parte do programa até hoje.
Para o roteirista Dudu Guimarães, que adora comentar sobre TV no Twitter, as cinco primeiras edições foram as que mais marcaram o programa: "Era uma novidade, então as pessoas comentavam muito, assistiam muito e tinham bons personagens. No primeiro teve o Bambam (ele ganhou o programa e foi de helicóptero dar uma entrevista no Jô, foi um surto coletivo o primeiro BBB), o Dhomini com a Sabrina, um casal incrível…”
Mas é a sétima edição, marcada pelo triângulo amoroso entre Diego Alemão, Siri e Fani, que ele elege como favorita: “Ela me marcou muito porque os personagens eram muito bons. Eu acho que depois teve um 'gap', porque as edições ficaram todas iguais. Não que foram edições ruins, mas nenhum personagem se destacou muito, não tinha um grande enredo dentro da casa."
Ainda sobre a importância de um elenco forte para o desenvolvimento do programa, Padi completa: "A grande chave do programa é formar um elenco que tenha divergências, que é o princípio da literatura, da dramaturgia. Tem que ter conflito. Se não tiver conflito, não tem jogo."
As fases do BBB
É impossível manter um produto de sucesso por tantos anos no ar e não oferecer atualizações constantes. Em 2002, quando o programa estreou, a curiosidade para ver os limites da mente humana prendiam a audiência na frente da TV. Uma década depois, com a popularização dos smartphones, o reality se viu integrando cada vez mais as redes para o projeto. Isso até 2020, quando o jogo se reconfigura de vez, trazendo ao jogo participantes famosos.
É como analisa Ciro Hamen, do canal "O Brasil que deu certo": "O propósito do programa hoje é bem diferente do que ele era originalmente. A entrada dos famosos aconteceu para ressuscitar um formato que já estava esgotado e com os dias contados. Desde o 1 até o 10 mais ou menos era algo que mobilizava a população na frente da TV. Depois, provavelmente com o crescimento das redes sociais, aquilo ali parecia não fazer mais sentido. Agora, se você pegar do 20 para cá, a audiência também não é a mesma do que eram nas primeiras edições (batendo mais de 50 pontos no Ibope), mas a relevância para as redes sociais e patrocinadores é possivelmente até maior, e para a Globo é isso que interessa, uma vez que dificilmente um programa de TV vai bater novamente os mais de 50 pontos de Ibope. O conteúdo teoricamente ainda é o mesmo, apesar de a forma ser bem diferente."
BBB 20: O fenômeno
O BBB 20 trouxe um grande marco e uma mudança inalterável para a estrutura do reality: a capacidade de usufruir as redes sociais como uma extensão do programa. Melhor ainda, como uma possibilidade de ampliar as discussões sociais do que acontecem dentro da casa. "O BBB 5, do Jean Willys, é marcado totalmente pela questão da homofobia e do grupo que estava contra ele”, recorda Padi. “Mas naquela edição, eles ainda não tinham essa previsibilidade de hoje. Em 2020 vem essa história dos famosos, com a força da rede social, com uma Manu Gavassi, um Babu, você conhece o perfil daquelas pessoas, sabe que elas tem uma militância, um repertório, e isso vai dar assunto na casa e vai gerar conversa. O programa já oferecia esses elementos para fazer acontecer o que aconteceu em 2020, que era aproveitar as tretas sociais na casa, mas eles só começaram a tirar um proveito melhor disso, nesta edição", explica.
Com todas essas mudanças que aconteceram nos últimos anos, especialmente com a edição de 2020 para cá, ainda dá para dizer que o propósito do programa permanece o mesmo após 20 anos? "O Big Brother é um produto de massa da TV aberta, então não devemos ter muitas ilusões, o programa nasceu como isso: um produto da indústria cultural para fins de entretenimento”, explica Gabriela Tessitore, psicanalista e professora de comportamento contemporâneo.
“Ele foi mudando, acompanhando as próprias transformações com as quais nós todos fomos passando. A partir do BBB 20, as pessoas começaram a perceber, então não era mais uma coisa desvinculada, redes sociais versus TV aberta. O programa sempre teve esse caráter de laboratório do comportamento humano, não tem muito como não ser isso. Voyeurismo, curiosidade, projeção narcísica, busca de exemplo e conduta… Chame como quiser, fato é: existe um gosto por ver pessoas vivendo e interagindo lá dentro da situação limite, porque é uma situação limite. A entrada das redes sociais na estratégia, a polarização política do país e a cultura do cancelamento: tudo isso muda radicalmente o modo como as pessoas vão interagir lá dentro e o caráter do programa".
É justamente pela capacidade do programa em ser um laboratório do comportamento humano que ele gera tanta identificação com o público, trazendo a possibilidade de a audiência aprender a partir daquelas situações. "É importantíssimo que o Big Brother traga assuntos para serem discutidos na sociedade”, diz Dudu. “A gente precisa falar desses assuntos, porque se você não fala, as pessoas acham que não existe, e aí a gente cai naquela ladainha de gente que fala 'não tem racismo no Brasil', e é claro que tem. É você que não quer falar sobre. É bom que as pessoas vejam isso na TV e tentem mudar a concepção delas sobre o assunto".
Apesar dessa importância crucial do programa, de atentar o público para esses temas sociais, é importante ponderar. "É bom que isso seja uma pauta da sociedade, claro, mas eu não vejo o BBB como uma disputa do prêmio Nobel ou algo do tipo”, nota Ciro. “É um programa de entretenimento e assim deve ser encarado. Não estamos votando naquelas pessoas para cargos públicos, estamos escolhendo as melhores jornadas".
Outro ponto significativo do programa que mudou nos últimos anos é a ideia do prêmio. No contexto atual, qualquer participante que está ali confinado tem o potencial de ser um "vencedor" (financeiramente), independentemente de ser o ganhador da edição em si ou não. É o que explica Ciro: "Hoje, o prêmio de 1,5 milhão pouco importa. As pessoas estão ali para se tornarem conhecidas ou alavancar a carreira. Isso também é uma grande mudança em relação aos primórdios do programa, quando ainda não existia a profissão 'influenciador digital'. Em relação a isso não vejo muita saída, tanto que o renascimento do BBB, colocando os famosos no programa é o maior sintoma de que a tendência é que isso vai continuar. São inúmeros os participantes que não conquistaram o prêmio de 1,5 milhão, mas que já conquistaram esse valor (ou muito mais) em publicidades, etc."
Se o foco dos participantes muda, ou seja, se o objetivo está na fama e não no dinheiro, a sua conduta dentro da casa também vai ser diferente, como analisa Dudu. "Justamente por isso que vemos [no BBB 22] uma edição fraca, de gente que não quer jogar realmente… Nas primeiras edições, a gente assistia aos grupos de 'vilões' e 'mocinhos', hoje está todo mundo com medo de falar 'eu quero ganhar um milhão e meio e vou combinar voto sim', então a gente vê esse medo das pessoas".
A importância cultural do BBB
Apesar do programa só ganhar recentemente essa potência para discutir temas sociais de forma ampla e acessível, essas ferramentas sempre estiveram ali e são intrínsecas a esse gênero televisivo. Mas com a junção das redes sociais, o reality vem emplacando uma identificação tremenda com o público, justamente por representar e acolher tão bem os dilemas atuais.
"Reality show é um formato típico da pós-modernidade, do mundo televisionado, o mundo da tal sociedade da imagem, onde a imagem está sempre fazendo a mediação entre o sujeito e a realidade, é uma expressão de um momento histórico”, diz Gabriela. “Assista ou não assista, o problema é seu. Agora que o programa é uma expressão cultural desse momento histórico, isso é óbvio. Assim como as redes sociais também são. As redes são expressões do mesmo jeito que o Big Brother é uma expressão de tudo isso, dessa cultura", conclui.
Então, para que não reste dúvidas ou falácias: Big Brother é cultura sim – e já tem seu lugar cativo na cultura pop brasileira.