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Raízes | Remake acende a discussão sobre liberdade, história e o direito à própria identidade

Refilmagem não tem o mesmo impacto da minissérie original, mas se mantém provocadora

17.10.2016, às 17H02.
Atualizada em 28.10.2016, ÀS 02H01

Uma das cenas mais poderosas de Raízes é o momento em que o africano Kunta Kintê aceita ser chamado pelo nome que recebeu de seus donos, Toby. A submissão à vontade do outro, contrariando os próprios desejos e princípios está no centro das relações de poder, e nenhuma submissão é maior do que a perda da própria identidade. Raízes é a história do esforço de um homem para manter sua identidade diante de forças invencíveis e circunstâncias nem sempre compreendidas pelo público contemporâneo, o que ironicamente exige que a história seja recontada mesmo diante do impacto da primeira versão.

Num daqueles casos de fenômenos da mídia, a história é conhecida mesmo por quem não testemunhou a exibição da série. Movido pela lenda familiar sobre seu antepassado africano ter sido um rapaz chamado Kunta Kintê e do que havia acontecido com os descendentes dele, o jornalista Alex Haley traçou sua genealogia até uma vila em Gâmbia. O relato romanceado da história da família deu origem ao livro Raízes e à minissérie homônima, que estreou em janeiro de 1977 nos Estados Unidos ainda sob o reflexo das comemorações do bicentenário da independência do país.

Temeroso de que o público demonstraria pouco interesse na história contada pelo ponto de vista de um escravo e seus descendentes, o executivo de programação do canal ABC, Fred Silverman, decidiu exibir a minissérie em sequência, e não em capítulos semanais, resultando num impacto sem precedentes. Bares ficaram vazios e números de audiência foram estabelecidos para não serem quebrados pelas décadas seguintes. Em Las Vegas, a atriz Leslie Uggams, parte do elenco da minissérie, testemunhou cassinos com mesas vazias enquanto os turistas voltavam aos seus quartos de hotel para assistir a mais um capítulo.

Na estreia da série, mais de duzentas e cinquenta faculdades e universidades criaram cursos baseados em Raízes e as bibliotecas foram inundadas por pedidos de pesquisa genealógica. Exibida na década seguinte ao movimento dos direitos civis e ao movimento black power, Raízes encontrou um país a caminho de aceitar seu passado como um quadro mais diverso do que a história tradicional havia mostrado até então. Para os descendentes de escravos, Haley ter encontrado seu antepassado era uma vitória contra o rompimento de suas histórias gerado pela escravidão e Kunta Kintê um símbolo de todos aqueles antepassados obrigados a assumir uma nova vida. Mesmo para os descendentes de imigrantes movidos para o continente americano por outras forças, a série foi um incentivo para buscar suas origens e entender como a guerra, a fome, perseguições políticas e étnicas haviam atuado para trazê-los até o presente.

Comparada a um tsunami, a onda indefensável sob a qual todos se curvam, Raízes deixou de ser programa de TV para se tornar um marco cultural, inabalado até mesmo pela descoberta de imprecisões na pesquisa genealógica de Haley e por um processo de plágio movido pelo folclorista Harold Courlander, que mostrou semelhanças entre Raízes e seu livro, The African, caso encerrado por um acordo extrajudicial.

A refilmagem não pode esperar ter o mesmo impacto sobre um público que há quatro anos viu 12 Anos de Escravidão levar o Oscar de melhor filme, mas reacendeu a discussão sobre como a escravidão deve ser retratada e até mesmo se o tema deve seguir aparecendo na TV e no cinema. Não faltaram pedidos de boicote contra a série e mesmo a defesa da ideia de que histórias sobre a escravidão deveriam ser contadas  somente por roteiristas, diretores e produtores afrodescendentes, o que equivale a dizer que somente cavaleiros britânicos deveriam produzir histórias sobre o rei Arthur e que talento, sensibilidade e valores de produção não deveriam ser os elementos definidores da qualidade de uma série ou filme.

Mais importante do que a discussão carregada de ideologia, a nova Raízes vai surpreender por apresentar a África de forma muito diferente do original e da imagem que a maior parte do público faz do continente. Com mais recursos que a série dos anos 70, a refilmagem mostra a vila de Jufure maior, mais detalhada e parte de um reino organizado. O guerreiro Kunta Kintê (Malachi Kirby) não é um garoto das selvas, mas um rapaz que planeja ir para a universidade em Tombuctu, instituição cuja existência certamente a maior parte da audiência desconhece. O resultado é um retrato que desafia a ideia ainda corrente de que os africanos trocaram a liberdade pela “civilização”. 

O novo roteiro também assume o fato histórico de que a escravidão já era prática entre os povos africanos. O resultado foi reacender a polêmica de que este dado seria uma forma de perdoar os europeus pelo tráfico negreiro, quando a realidade é que a comercialização de seres humanos foi uma atividade aprovada em uma ou outra época em todos os continentes. Mas uma coisa é aprender sobre isso nos livros de história, outro é ver uma das vítimas narrando como sua vida foi interrompida pelos desígnios alheios. E é aí que histórias como Raízes encontram seu lugar. 

Com 8 episódios, a nova versão de Raízes estreia no Brasil hoje (17), às 22h40, no History Channel