Cidade de Deus: A Luta Não Para deveria se tornar o novo mapa de como fazer uma boa legacy sequel. O formato, que virou obsessão de Hollywood nos últimos anos, consiste em retomar uma franquia há muito dormente com o retorno de alguns personagens e atores originais, fisgando o público pela ideia de nos mostrar por onde eles andam X anos depois - mas também a introdução de uma “nova geração” que, nos termos mais cínicos possíveis, possa garantir a continuidade da marca. A Luta Não Para faz exatamente isso, mas os dois primeiros episódios da série da HBO e da Max, disponibilizados com antecedência ao Omelete, mostram um par de virtudes muito bem-vindas: clareza de visão sobre o tal legado de Cidade de Deus, e gana de contar uma nova história.
E é o roteiro que faz a diferença ao não se deixar dominar pela nostalgia vazia de outras sequências tardias com capital elevado na cultura pop. Assinado por uma equipe formada por Sérgio Machado, Armando Praça, Renata Di Carmo, Estevão Ribeiro e Rodrigo Felha, o texto abusa de certo didatismo nos primeiros minutos para nos reintroduzir ao mundo da Cidade de Deus, vinte anos depois dos eventos do filme (vale lembrar que o longa se passava na década de 1980, e portanto na série ainda estamos em 2004), com personagens como Buscapé (Alexandre Rodrigues), Barbantinho (Edson Oliveira) e Bradock (Thiago Martins) rearranjados na hierarquia comunitária da favela e do Rio de Janeiro no início do século XXI.
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É uma re-ambientação rápida, no entanto, e ditada também pelo esforço de localização destes personagens dentro da história que a série quer realmente contar: a do confronto entre o novo chefe do crime na favela, Curió (Marcos Palmeira, um poço de carisma), e o próprio Bradock, recém-saído da prisão. E se essa guerra de facções aproxima a série do thriller cinético que Fernando Meirelles e Kátia Lund fizeram em seu filme original, A Luta Não Para faz bem também ao se aproveitar das particularidades de formato e duração de uma série de TV para pisar no freio com frequência e, assim, se afastar dos erros cometidos pelo longa-metragem.
Aqui, ao contrário do que aconteceu na tela grande, o coração da história não está na ambição e perversão do crime, na construção de um O Poderoso Chefão brasileiro. O coração da história está no que acontece ao redor dos proverbiais Corleones cariocas, no caos que eles causam e nas subjetividades nas quais eles não conseguem tocar. A Luta Não Para é sobre um povo que busca a paz, que discorda sobre como chegar lá, que se choca no caminho, e que segue encontrando espaços para viver mesmo quando a paz ainda não foi alcançada. Diante do desafio de fazer um Cidade de Deus para a contemporaneidade, e um Cidade de Deus que tem tempo para respirar, a série faz desse respiro sua própria identidade.
E ajuda muito que Aly Muritiba esteja atrás das câmeras, aplicando a A Luta Não Para ideias visuais tão ousadas quanto aquelas que Meirelles e cia. empregaram no filme - mas ideias diferentes, que fazem mais sentido aqui do que as antigas fariam. Saem de cena as brincadeiras com a dilatação do tempo e a edição, a ideia da linguagem do comercial adaptada ao cinema, e entra em cena um cuidado de iluminação e granulação apurados, sintonizado às sensações dos personagens. Muritiba pega a deixa da câmera de Buscapé para filmar a guerrilha urbana com um faro de fotógrafo jornalístico: clareza de informação em primeiro lugar, mas seguida imediatamente de uma subjetividade que quer passar a quem assiste a sensação de estar lá, no chão, com aquelas pessoas diante da lente - e se importando com elas.
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A nova Cidade de Deus, enfim, parece entender que o apelo dialético da criação do thriller criminal à brasileira pode ter sido o que vendeu a lenda do filme para as massas e para os gringos. Mas, desde então, a luta não parou - e não tem porque o nosso audiovisual parar tampouco. Ao menos nesses dois primeiros episódios, a série acerta justamente por ser 20 minutos de celebração de legado e 2 horas de excelente televisão.