Comparações têm, invariavelmente, um quê de injustiça; às vezes, no entanto, elas são inevitáveis: não há como falar de 1899 sem falar de Dark, trabalho que alçou à fama seus criadores, Baran Bo Odar e Jantje Friese, e se tornou um dos maiores sucessos em língua não-inglesa na história da Netflix.
Dark seduziu o público ao redor do mundo com uma intrincada trama de viagens no tempo, parentescos complicados e camadas sob camadas de mistérios. Um elemento subestimado, porém, foi essencial para seu sucesso: a fundação sólida de seus personagens. A cidadezinha de Winden, afinal, era não só o pano de fundo para acontecimentos estranhos e trágicos, mas também lar de figuras multifacetadas e complexas, envolvidas em uma teia permeada por relacionamentos falidos e famílias disfuncionais. Era o envolvimento do espectador com os dramas dos personagens que ancorava a série em meio aos segredos da trama e colocava em perspectiva o que estava em jogo.
Tal elemento é por vezes escanteado em 1899, em favor das grandes ambições da história, que agora se passa em um grande navio, o Kerberos, que leva mais de mil passageiros, de diversas nacionalidades, rumo às promessas de uma vida melhor na América. Conforme o capitão Eyk (Andreas Pietschmann, o Jonas adulto de Dark) e sua equipe mudam de rota para atender ao chamado do Prometheus, um navio há meses desaparecido, mistérios começam a se acumular, e as tensões se acirram dentro da embarcação, deixando pouco espaço para a construção das individualidades de seus personagens.
Em uma estrutura que remete a Lost (2004-2010), Odar e Friese aos poucos nos apresentam aos passados de algumas de suas figuras centrais, como a médica Maura (Emily Beecham), a jovem chinesa Ling Yi (Isabella Wei), o francês Lucien (Jonas Bloquet), e uma família dinamarquesa ultra-religiosa. Não é o suficiente, no entanto, para sair da superfície: o que aprendemos é que, em comum, todas essas pessoas têm vidas recheadas de trauma e luto, o que explica suas respostas à escalada de tensões no navio, mas não muito mais do que isso.
A boa notícia é que o mistério da série é envolvente e instigante o bastante para manter o espectador interessado até o final da temporada. Pistas e símbolos são distribuídos habilmente ao longo dos oito episódios, preparando o terreno para revelações e reviravoltas recompensadoras, mas que colocam ainda mais dúvidas na cabeça de quem está assistindo. É uma estrutura viciante, que os criadores de 1899 parecem ter aperfeiçoado com a experiência de Dark.
A nova empreitada também se destaca com os visuais impressionantes – sem dúvidas, fruto de um bem-vindo aumento de orçamento após o sucesso da série anterior. Os cenários de 1899 são ricos e bem elaborados, e a equipe da produção consegue usar os efeitos visuais a seu favor, especialmente nas complicadas sequências em mar aberto. Ponto, aqui, também para a direção segura de Odar, que comanda toda a temporada.
Ao fim do primeiro ano da 1899, a vontade de ver o que mais Odar e Friese guardam para o futuro é inegável; as pontas deixadas pela série, porém, apontam para a necessidade, agora inadiável, de revisitar com profundidade os personagens que ficaram pelo caminho. Conciliar esse aspecto com os mistérios, de forma equilibrada, será vital para a condução de uma (muito provável) segunda temporada – e já sabemos que seus criadores são mais do que capazes disso.