Divulgação

Séries e TV

Crítica

6ª temporada de Black Mirror aponta futuro com mais fantasia e menos sci-fi

Entre altos e baixos, obra de Charlie Brooker retorna com suas sátiras sociais, mas explorando novas formas de construí-las

16.06.2023, às 19H58.

Mais de dez anos após seu lançamento, Black Mirror ainda explora maneiras diferentes de despertar a curiosidade de seu público. Inicialmente imaginada como uma sátira social com toques de ficção científica, ao chegar nas mãos da Netflix, na segunda metade da década passada, a obra de Charlie Brooker entrou em uma era autorreferente e um pouco menos interessante. Saiu o foco nos dilemas éticos e na investigação dos limites morais da sociedade, entrou uma busca por um distanciamento cada vez maior da realidade que fez muita gente acreditar que a série era sobre tecnologia – nunca foi.

Após altos e baixos e até algumas experimentações de formato mal sucedidas, como o episódio especial “interativo”, o 6º ano da obra busca um retorno às origens, mas com uma diferença: de uma série inglesa de pequenas pretensões, Black Mirror se tornou uma megaprodução de uma das empresas mais influentes da indústria no século. A diferença aqui é que, se em outros anos, Brooker parecia interessado em construir mundos cada vez mais distantes do real, aqui, a obra vai em uma direção diferente, buscando levar elementos fantásticos para mundos bem ordinários. A onda de true crime e a espetacularização da violência, a falta de privacidade na era dos algoritmos, tudo isso está em voga e não poderia deixar de ser assunto nos novos episódios. Mas, com um esforço maior por construir um mundo identificável.

Abaixo, analisamos a temporada episódio por episódio:

Joan Is Awful

Ao assistir a "Joan is Awful", entendemos perfeitamente porque o episódio abre a temporada. Basicamente, um pouco de tudo que foi abordado na série até hoje, está, em alguma medida, aqui. A sátira da nossa submissão aos algoritmos e “termos de uso” das plataformas e tecnologias do mundo de hoje é uma boa sacada, mas o episódio parece não conseguir desenvolver muita coisa para além disso.

Em dado momento, para de importar o que está sendo criticado, e importa mais um tedioso jogo de gato e rato, com os personagens sempre correndo até o próximo cenário para que alguém passe os próximos cinco minutos explicando o que está acontecendo. A brincadeira com os algoritmos e subjugação da tecnologia nunca é explorada para além da ideia inicial, e boa parte da duração do episódio inaugural dessa temporada é investida nessa necessidade de fazer parecer complexo aquilo que não é – e infelizmente, sempre com muita verborragia.

Loch Henry

O segundo episódio já ruma para um lugar diferente. Menos preocupado em ser distópico e mais em satirizar um problema real. Não é de hoje que o “true crime” é assunto polêmico nas redes. Sempre que um novo podcast do tipo surge, volta a velha discussão sobre ética no jornalismo e os limites entre contar uma história e explorar a dor alheia. "Loch Henry" chega justamente para fazer uma graça em cima disso: e se o custo de banalizar a violência fosse você ser vítima dessa mesma violência?

O interessante segundo episódio leva a essa ala desumanizada dos “true crimers” uma fração do terror que muitas vezes por eles é romantizado. Se muitas vezes falta empatia ao transformar em narrativa a dor de terceiros, como seria se a dor transformada em livro, série, filme, ou o que quer que fosse, fosse a sua? Desde sempre, foi um ponto central de Black Mirror a ideia de levar a dor infligida a terceiros para a primeira pessoa e, então, observar a degradação psicológica resultante. "Loch Henry" é um dos episódios que faz isso mais diretamente e de forma mais interessante, principalmente por saber introduzir uma tensão crescente, que imerge a obra no terror e transforma em drama o trauma posterior.

Beyond the Sea

O episódio protagonizado por Aaron Paul e Josh Hartnett tem seus altos e baixos, mas é um dos mais audaciosos do sexto ano. Dois astronautas precisam dividir um mesmo corpo para visitar o planeta Terra enquanto estão no espaço. Com isso, surgem tensões e um potencial triângulo amoroso com a esposa de um deles. O que o episódio tem de melhor é a forma como seu diretor John Crowley consegue manter a tensão mesmo quando a comédia e o romance entram em cena. Além disso, na maior parte do tempo, Crowley dirige seus atores de forma que fuja de julgamentos, os mantendo neutros e deixando nas mãos do público desenvolver por si o que pensam de cada situação explorada.

Apesar do pano de fundo de ficção científica, "Beyond the Sea" é outro episódio que vai na veia do que Charlie Brooker sempre gostou de abordar: situações de estudo da moralidade humana. O criador da série utiliza a fantasia e a ficção científica para criar cenários que obriguem seus personagens a fazer uma sequência de escolhas que ponham em dúvida não só seus princípios, mas seu orgulho e segurança.

A coragem de Brooker em "Beyond the Sea" vem pelo fato de o episódio ter toda a pinta de que vai finalizar com um final ambíguo e provocante, mas na verdade, se torna um exercício de imaginação para o espectador. No fim das contas, apenas uma opção é dada para aqueles personagens, e o grande mérito é instigar quem assiste a pensar “nessa situação, o que eu faria? E o que isso diz sobre mim?”.

Mazey Day

O mais curto é também o mais desinteressante do sexto ano do seriado. "Mazey Day" acompanha uma paparazzi (Zazie Beetz) que recebe a missão de conseguir uma foto de uma atriz que está fugindo dos holofotes. Apesar de uma ou outra ideias legais, como a referência à Nascido Para Matar quando um personagem diz “shoot me” (que inglês serve tanto para atirar, quanto para fotografar), o episódio de Uta Briesewitz está no já batido pacote Black Mirror que apresenta ideias legais e não as leva para lugar nenhum.

Nem em termos de roteiro, nem esteticamente, "Mazey Day" traz qualquer coisa que o salve de soar como mais um terror genérico e que não sabe o que fazer com seus signos, elementos, personagens e clima. O pior de tudo é a sensação de que mesmo se tivéssemos mais vinte ou trinta minutos de tela, nada mudaria, já que ao fim, praticamente nada foi construído a favor da protagonista desperdiçada. O que há de positivo é alheio ao episódio: o interesse de Brooker de se distanciar da tecnologia e abraçar lendas e mitos históricos.

Demon 79

"Demon 79" se junta a "Mazey Day" como os dois episódios da antologia de Brooker que mais fogem do que popularizou Black Mirror. Sai a ficção-científica, entra a fantasia pura, das lendas urbanas e mitos antigos. Aqui, um demônio informa à protagonista Nida que ela precisa matar três pessoas para evitar que o mundo acabe. Com isso, a personagem se vê no dilema de ceifar a vida de inocentes em troca da existência de toda a civilização humana.

O episódio não é lá dos melhores da série, mas é interessante justamente por esse apontamento do futuro do seriado. Com uma dose de incerteza sobre como construir o humor para além do roteiro e equilibrar isso com o terror – um desafio histórico do audiovisual, mas que já tem caminhos apontados para realizadores desde os anos 70 –, "Demon 79" parece não conseguir nem conciliar as duas coisas, nem desenvolver suas ideias através das imagens. Mas não deixa de ser curioso observar essa tentativa de revitalizar a série reduzindo a presença de distopias tecnológicas e apostando no fantástico. É mais do que bem-vinda essa busca de Brooker por explorar novos caminhos para desenvolver suas sátiras, ainda mais quando a série parece já estar há um bom tempo longe de seu auge.

Por mais que, como um todo, a 6ª temporada de Black Mirror não tenha uma sequência de episódios forte como outrora, esse esforço por encontrar um caminho diferente é louvável e garante que a série ao menos tenha algum futuro, em vez de simplesmente regurgitar os mesmos temas e meios que já foram consagrados no passado.

Nota do Crítico
Bom