Cena de Abbott Elementary (Reprodução)

Séries e TV

Crítica

Abbott Elementary prova que ainda há espaço para boas sitcoms tradicionais

Comédia de Quinta Brunson acerta com personagens ultra-específicos e verdadeiros

02.09.2022, às 13H24.
Atualizada em 10.02.2024, ÀS 15H17

Houve um tempo em que a sitcom americana era o termômetro mais preciso das mudanças sociais do país, mediando através do humor a relação do público com os dilemas e avanços da vida moderna. The Mary Tyler Moore Show sinalizou a aceitação da mulher solteira trabalhadora, The Cosby Show trouxe a família negra para a frente do diálogo social, Will & Grace marcou uma nova era de ativismo LGBTQIA + pós-epidemia do HIV. Isso, no entanto, era quando as três ou quatro maiores emissoras abertas americanas (ABC, NBC, CBS, Fox) tinham o luxo de monopolizar a atenção do público. 

Difícil argumentar que elas fazem isso hoje em dia, diante do cenário fragmentado do streaming e das mudanças na forma como séries americanas são distribuídas através do mundo (para entender um pouco mais essa discussão, confira nosso artigo sobre o fim de This is Us). Daí que fica complicado apontar qual foi a última vez que uma sitcom atingiu o zeitgeist da mesma forma que os exemplos de décadas anteriores que listamos no parágrafo acima - talvez as primeiras temporadas de Modern Family, lá em 2009; ou o miolo de Brooklyn Nine-Nine, por volta de 2016. Desde então, nada.

Abbott Elementary é descendente legítima dessa tradição, e era possível sentir isso desde o começo de sua trajetória, em dezembro do ano passado, durante exibições lineares na ABC. Embora não tenha sido um fenômeno de audiência, a produção atingiu aquele território único, reservado apenas às ótimas sitcoms, em que personagens com cacoetes ultra-específicos encontram um caminho fácil para se infiltrar na cultura popular. O segredo, claro, é autenticidade: quando observam e colocam sob lente de aumento traços verdadeiros da situação e das pessoas que representam, sitcoms carregam o superpoder único de tirar sarro delas e celebrá-las ao mesmo tempo.

A protagonista da série é Janine Teagues (Quinta Brunson, também criadora e roteirista), uma jovem professora que se torna a mais nova adição ao quadro de docentes da escola pública de educação infantil Abbott Elementary. Durante os 13 episódios da primeira temporada, acompanhamos enquanto ela e seu espírito otimista indomitável enfrentam dificuldades financeiras, o descaso da administração e o choque de personalidades com os outros funcionários: as veteranas professoras Barbara (Sheryl Lee Ralph) e Melissa (Lisa Ann Walter), o aplicado novato Jacob (Chris Peretti), o ambicioso substituto Gregory (Tyler James Williams) e a inepta diretora Ava (Janelle James).

O elenco de Abbott Elementary colecionou quatro indicações ao Emmy 2022, e não foi à toa. Na mesma levada de outros grandes elencos de sitcom, eles se complementam e exibem química impecável sem abrir mão de construir personalidades únicas e desfilar timing cômico afiado, seja nas olhadas expressivas para a câmera (a série segue o estilo mockumentary de Modern Family e The Office) ou nas entonações oblíquas dadas a cada uma das frustrações que compõem o dia a dia dos professores de escola pública.

É verdade que Sheryl Lee Ralph e Janelle James são as grandes revelações da série - uma resolvendo no deadpan, na sutileza, o que a outra compensa na expansividade -, mas não existe elo fraco aqui. Se ainda houvesse sobrado uma vaga no Emmy para a Melissa de Lisa Ann Walter, não seria nem um pouco injusto, tendo em vista que ela é quem encontra a figura mais reconhecível dentro do ambiente escolar, brincando com estereótipos do white trash (termo americano reservado normalmente ao branco pobre das periferias) para encarnar um deboche que emula descaso com o trabalho, mas esconde um enorme coração.

Claro que muito do que os atores tão habilmente expressam em tela já estava na página, no trabalho cuidadoso de Quinta Brunson e seu time de roteiristas. O texto da série, assim como a sua construção visual (Randall Einhorn, veterano de séries como The Office e It’s Always Sunny, dirige seis dos 13 episódios), fazem com excelência o trabalho ingrato de tomar para si todo um leque de formatos cansados e nos lembrar do porquê eles funcionavam no passado. Corre nas veias de Abbott Elementary, enfim, um amor verdadeiro pela sitcom como entretenimento, mas também como instrumento de diálogo social.

Esta é, afinal, a história de como professores desafiam um ambiente desprestigiado para realizar o trabalho mais essencial imaginável para o tecido da nossa sociedade. O curioso é que, assim como os docentes que retrata, Abbott Elementary prosperou em condições inóspitas pelas forças da persistência, da diligência e da excelência - a diferença é que a série, ao contrário dos personagens, está sendo devidamente recompensada por isso no Emmy.

Nota do Crítico
Ótimo