Duas coisas sobre a décima temporada de American Horror Story ficaram muito claras quando ela chegou ao fim: a primeira é que Ryan Murphy está convencido de que a humanidade está condenada e a segunda é que não importa o que aconteça com a estrutura da série, ela continua sendo um sucesso. E falar de estrutura aqui é importante, porque a decisão de dividir a temporada em duas tramas distintas está diretamente ligada ao que permeou a franquia por todo esse ano. American Horror Stories (a versão com episódios antológicos) anunciou o que já vinha sendo insinuado desde Apocalypse: temos ideias e temos pressa em contá-las.
Até a quinta temporada, American Horror Story se dedicava a um número maior de episódios e com mais tempo de duração. Havia episódios de 45 minutos, mas geralmente estreias, grandes viradas, finales, eram contempladas com 50 ou 60 minutos. Isso pode parecer sem importância, mas a diferença de ritmo é muito grande. Dentro do desenvolvimento de uma história, 5 minutos de investimento em um personagem, por exemplo, podem mudar drasticamente nossas impressões sobre ele. Esse tempo extra afeta transições, planos e até mesmo a relação entre imagem e trilha.
De Roanoke para cá as coisas mudaram... A sexta e cultuada temporada foi a mais bem sucedida da série em termos de audiência e por estar enquadrada em um modelo de documentário televisivo, teve todos os seus episódios enquadrados no tempo máximo de 42 minutos, sem intervalos (o tempo comum entre séries de TV aberta nos anos 90, por exemplo). Isso acabou aumentando o ritmo – o que era adequadíssimo ao que se propunha aquela temporada – mas também cutucou os criadores com um novo tipo de meta. 1984 e Double Feature chegaram a ter episódios de apenas 38 minutos. American Horror Story se reinventava, conquistando novos horizontes, mas também perdendo-se um pouco pelo caminho.
É como acompanhar o descontrole de uma fórmula... Agora, além de termos American Crime Story e American Horror Stories, também teremos American Sports Story e American Love Story. Curiosamente, essa prolixia criativa também acabou se tornando parte do que vimos em Double Feature. Ryan Murphy e Brad Falchuk têm se debruçado sobre o que os motiva enquanto artistas e o resultado disso não foi exatamente lúcido.
Red Tide
A escolha de "Red Tide" para iniciar os trabalhos do décimo ano foi acertada. Houve um pequeno ruído de marketing, que fez parte do público achar que estaríamos falando de criaturas marinhas carnívoras; quando, na verdade, o tema desse primeiro momento foi bastante filosófico: Até onde estamos dispostos a ir para provar que temos talento? Assim, o confuso escritor Harry Gardner (Finn Wittrock) chega até a gélida Cape Code com sua família e lá conhece Belle (Frances Conroy) e Austin (Evan Peters), dois artistas renomados no mundo todo, que se refugiam ali por uma obscura razão: uma pílula preta chamada Muse , que acelera o talento de quem já o tenha, desde que você esteja disposto a viver consumindo sangue humano como efeito colateral. Se você tomar a pílula e não for talentoso, se transforma em uma das criaturas pálidas que rondam a cidade no inverno.
A ideia por si só é cheia de boas ramificações. Harry tem uma filha e uma mulher ambiciosas. Uma quer ser violinista e a outra uma decoradora. Quando toma a pílula, Harry se torna o roteirista dos sonhos de Hollywood, mas a coisa sai do controle quando sua filha também toma o comprimido e vira uma assassina sem culpa. A esposa está grávida, insegura, a filha psicótica, a sede constante, o ego, o orgulho... De forma surpreendente, "Red Tide" começa trazendo de volta o melhor de AHS, com personagens consistentes e uma trama original e cheia de analogias.
Apesar da participação medíocre de Adina Porter e dos poucos minutos de tela de Sarah Paulson (envolvida com American Crime), todos os planos parecem corretamente traçados. Sarah vive uma mulher que se corrói inteira por medo de tomar a pílula, revelar seu talento, mas se tornar uma vampira. Ou não ser talentosa e ter o mesmo destino, sem os benefícios. Seu melhor amigo, vivido por Macaulay Culkin, tem o mesmo medo, mas parece mais disposto a arriscar a possibilidade. Do outro lado, Leslie Grossman faz a agente de Hollywood que não tem nenhum choque com nada que está acontecendo: ela só quer um novo hit, um Oscar.
Por cinco de seus seis episódios, "Red Tide" segue com uma segurança impecável. A prova disso é que ocupou mais tempo na estrutura, já que havia muito o que se dizer sobre processos criativos que sacrificam artistas ou mesmo devoram seus interlocutores. É especialmente cruel ver como a personalidade delusional (aquela que não sabe das próprias limitações) é tratada como um processo de monstrificação gradativa, que se conecta, debochadamente, com o resto da trama. Os talentosos bebem sangue, matam pelo sucesso. Os iludidos, matam pelo ressentimento de não serem gênios. As possibilidades de exploração analítica eram tantas que 10 episódios ainda seriam pouco.
Contudo, lá estava o episódio 6 correndo com a trama, perdendo minimalismo, apelando para o exagero e se esvaziando. Afinal de contas, os aliens estavam por vir.
Death Valley
O curioso é que em apenas quatro semanas, "Death Valley" conseguiu causar boas impressões, alternando a narrativa em preto e branco, que mostrava os primeiros contatos entre humanos e alienígenas; e o presente, quando a descoberta de um híbrido perfeito ainda está em andamento. Não é uma ideia nova, já foi abordada exaustivamente em Arquivo X, mas brincou daquilo que AHS mais gosta: misturar figuras reais com teorias conspiratórias. Contudo, depois de tantos anos aguardando uma temporada de aliens, o gosto que ficou foi de quero mais.
Assim como Chris Carter, que usou muitos documentos apócrifos para criar a trama do contato entre aliens e humanos do alto escalão, na busca por um acordo que adiasse a colonização enquanto fabricavam um híbrido; Ryan Murphy foi lá atrás, na teoria de que Ike Eisenhower (Neil McDonough) foi o presidente que primeiro entrou em contato com as criaturas e cedeu ao que eles exigiam: tecnologia em troca de seres humanos abduzidos para servirem de hospedeiros.Tanto em Arquivo X quanto em "Death Valley", o objetivo é simples: as pesquisas começam no passado, mas o primeiro híbrido bem sucedido só nasce em 2021.
Em apenas quatro semanas, não dá tempo de se aprofundar em nada. A aparição de Amelia Earhart (Lily Rabe) é medíocre e a boa ideia de colocar Marilyn Monroe (Alisha Soper) como queima de arquivo depois de compartilhar segredos com Kennedy, é superficial. Há boas discussões políticas sobre essa infame parceria, mas é difícil se importar com os abduzidos jovens, sobretudo quando Murphy escolhe o casal gay para ter sua “gravidez” transformada em picos de gore. sabendo-se lá o que raios ele quer dizer com isso. Ainda é interessante, bem escrito, mas excessivamente direto. Sem tanto tempo, como não sê-lo?
O visual de arte deslumbrante, as referências a outros clássicos do gênero, o pessimismo reprisado... Tanto em "Red Tide" quanto em "Death Valley", Murphy condena o mundo. É também uma mudança de perspectiva. Antes, independente do horror, ele nunca deixou de pedir licença ao final minimamente feliz. A American Horror Story de 2021 é brutal. Se a falta de talento não nos matar... a nossa desumanidade híbrida matará.