Ainda que Star Wars fosse político desde 1977, os filmes falavam de guerra com uma inclinação muito maior à alegoria do que ao literal. À medida que toda produção hollywoodiana no século XXI tende mais ao literal, a franquia não escapa dessa tendência - basta lembrar George Lucas colocando nos prelúdios as frases de George W. Bush na boca de Palpatine, ou então Clone Wars problematizando a tortura como prática de guerra no começo de sua segunda temporada, na mesma época em que o recém-eleito Barack Obama foi incapaz de fechar Guantánamo, como havia prometido em campanha.
O que a série Andor faz agora é assumir de vez essa literalidade, ao invés de tratar a guerra como um tema transversal numa narrativa de fantasia. Quando escreveu o roteiro de Rogue One (e dirigiu as conturbadas refilmagens do longa sem receber crédito oficialmente por isso), Tony Gilroy já se dispunha a contar uma história de guerra nos moldes consagrados pelo imaginário das duas grandes guerras do século XX, ou seja, atribuindo ao drama do martírio coletivo um valor acima dos demais. Andor chega para consolidar essa vocação, esboçada em Rogue One, para a melancolia do combate.
Como a Guerra ao Terror parece em 2022 uma vergonha que os Estados Unidos escolhem ignorar, então a narrativa de Andor atualiza seus temas, e se reveste com duas alegorias mais atuais: a defesa do proletariado sindicalizado e a denúncia da violência policial institucionalizada. O que é o planeta industrial Ferrix senão um microcosmo de tensões do trabalho: de um lado, a exploração de mão de obra anônima, os imigrantes tipificados no elenco de minorias étnicas; de outro, o tédio da burocracia e do capital, que por fim acaba unindo a elite ostentadora de Coruscant e o carreirismo nas fileiras do Império.
Sob esse olhar, parece óbvio que a primeira temporada só poderia terminar mesmo com uma imagem como os flautistas desafiando a PM, ícone dos nossos tempos pós-Primavera Árabe. A oportunidade estava no ar e nem era preciso esticar demais o braço para alcançá-la: Andor captura esse imaginário contemporâneo da revolução popular e de quebra se protege de eventuais acusações de apologia à subversão, porque afinal os guerrilheiros de fato na trama (Luthen, Vel) são desenhados menos como heróis de convicção moral e mais como figuras trágicas de decisões questionáveis, alistadas pela máquina da guerra. Os heróis são o povo, a começar por Cassian, cujo arco se resume basicamente a trocar o instinto de sobrevivência pela disposição ao sacrifício de guerra.
Tudo isso, por enquanto, é apenas uma constatação; Andor tem sido muito elogiada por essa sua escolha por um texto e um tom mais “adultos”, mas a literalidade não é um mérito em si. É possível criar, inclusive, uma narrativa essencialmente literal nos temas e na sofisticação dos diálogos, e tudo isso resultar apenas pedante. Nos seus momentos mais frágeis, Andor sobe nessa corda bamba, entre ser sofisticado e se encantar demais com seu próprio texto; felizmente, Gilroy não parece ter a pretensão de ser um novo Aaron Sorkin e, quando precisa, Andor adere sem pudor a formatos populares “baratos”, como a trama de assalto ou de fuga de cadeia.
O mérito está, sim, em como Gilroy modula essa narrativa do “povo no poder” para extrair dela sua força mais plena. Andor evita as armadilhas da demagogia fácil ao engajar-se 100 por cento num world building definido por dinâmicas de convívio e poder, sejam sociais, políticas ou econômicas. Em outras palavras, Andor almeja para si ser ficção científica genuína. Isso envolve criar figurinos e cenários que demonstram a opressão estética do Império (obviamente o presídio seria de um branco tão cegante quanto a distopia de THX-1138), envolve conceber viradas de roteiro a partir da lógica da opressão (como o fato de Cassian ser preso por acidente e cair num julgamento kafkiano) e envolve até repensar Star Wars de forma quase herética (ao tirar os stormtroopers e os aliens de cena por um tempo e dar rosto a meia-dúzia de oficiais do Império para revelar as pulsões humanas que movem o fascismo; pulsões essas que adquirem sua carga mais erótica no choque entre Syril e Dedra).
Mais do que empenho total na construção de mundo, o discurso que molda essa ficção também implica reproduzir na fantasia nossas obsessões. Então, se a nossa vida é regida pelo dinheiro, maniacamente, nunca se falará tanto de dinheiro em Star Wars quanto agora: o valor do colar com o cristal, o valor do butim do assalto, o preço de uma peça sem ferrugem, as doações ou empréstimos que Mon Mothma precisa tomar para não cair na malha fina do Império. Quem reclamava das cenas no Senado nos filmes prelúdios jamais imaginaria que Star Wars entraria no mérito da Receita Federal.
A partir desse investimento pesado numa construção de mundo consistente, Andor pode então tomar para si e revolucionar os símbolos da guerra e do capitalismo (no século XXI, mais do que nunca, ficou evidente que guerra e capitalismo têm uma relação de codependência). Um único exemplo para melhor ilustrar isso: o tocador da bigorna de Ferrix, personagem digno das melhores construções de mitologia da ficção científica e que orgulharia demais o antropólogo George Lucas. Ao criá-lo, Gilroy está revestindo de romantismo uma coisa tão embrutecida quanto a sirene do turno de uma fábrica. De fato, Andor a está ressignificando: a sirene deixa de ser um lembrete da opressão e passa a ser um totem da coletividade, cujo som em código só os operários do planeta compreendem. A revolução acontece de dentro para fora e isso também permite que Andor se esquive da demagogia.
Ao dar importância aos pequenos gestos, aos coadjuvantes sem nome, às ações aparentemente banais que se encaixam no grande esquema das coisas (a cena pós-créditos, até de certa forma manjada, não seria outra senão a revelação do objetivo das peças montadas na prisão), Andor não está apenas romantizando a vida do homem comum: está devolvendo a Star Wars uma importante consciência de escala. Isso pode parecer pouca coisa, mas não é. Na era em que as franquias sob propriedade da Disney competem em gigantismo, e por consequência perdem suas excepcionalidades e sua perspectiva, lembrar de escala é lembrar do humano.