Proteger as crianças e cuidar de seu desenvolvimento parece algo óbvio, mas nem sempre foi assim. No século IX, as crianças trabalhavam desde cedo e eram vistas por muitos pais como um fardo. Para os órfãos, tudo isso era ainda pior. É nesse contexto duro que se passa Anne with an E, produção da Netflix com o canal CBC, que adapta as histórias de Anne of Green Gables, escritas por L.M. Montgomery. Apesar dessa realidade difícil, a série tem um clima mágico e discute temas como identidade e esperança de uma forma gostosa de assistir.
Com 88 minutos de duração, o primeiro episódio é praticamente um filme que apresenta Anne e sua realidade. Órfã desde muito jovem, ela foi “adotada” por várias famílias e precisava trabalhar para “agradecer” por isso. A direção de Niki Caro (do live-action de Mulan) é bem delicada ao mostrar os traumas da menina e, apesar de algumas cenas serem duras, elas não deixam o episódio carregado.
Anne é mostrada quando está prestes a ir para Green Gables, seu novo lar, para viver com os irmãos Marilla (Geraldine James) e Matthew (R.H. Thomson). Os dois queriam um menino para ajudar na fazenda, e a chegada da garota é uma decepção. É nesse momento que Anne with an E se torna uma série delicada, otimista e envolvente. A garota lida com sentimentos como rejeição e dúvida e imediatamente gera empatia com o público que a assiste. O episódio também acerta ao não mostrá-la de forma perfeita. Ao contrário, Anne é irritante em vários momentos e, apesar de sua situação ser compreensível, é como se ela precisasse conquistar o público enquanto faz o mesmo com os irmãos Marilla e Matthew.
A partir do terceiro episódio, Anne with an E se aprofunda no desenvolvimento dos personagens, principalmente da protagonista e de Marilla. Já parte da família, Anne vai para a escola e enfrenta dilemas comuns da juventude, como a busca por identidade. Após sofrer traumas em vários lares adotivos, a jovem escolheu sonhar com mundos de fantasia para escapar de sua triste realidade. Assim, Anne imagina histórias de mulheres fortes, que passam por várias adversidades e se tornam heroínas. Mas quando vai para a escola, ela percebe que esse comportamento não é bem visto entre seus colegas e professores. Ela se sente excluída e questiona qual é seu lugar naquela realidade, em que as crianças já precisam se comportar como pequenos adultos.
Marilla também tem um desenvolvimento interessante durante a primeira temporada. Ela começa como uma mulher dura do interior, que não tem tempo para as fantasias de Anne e se irrita com a garota. Aos poucos essa visão muda e o amor pela menina a faz pensar além das fronteiras de sua fazenda. O caso mais emblemático é quando ela resolve ir para um grupo de leitura com mulheres que discutem temas como o sufrágio e o começo do feminismo. Há algum tempo, isso seria impensável para sua realidade, mas a chegada de Anne também gerou um questionamento em Marilla sobre seu papel como mulher dentro de casa e na sociedade. Agora ela tem forças para questionar o que não concorda e quer ser ouvida.
Já Matthew é apresentado desde o começo da temporada como alguém mais calmo do que sua irmã. O maior dilema vivido por ele é a chegada da velhice e como lidar com situações em que não consegue ajudar sua família. Como um homem de seu tempo, Matthew foi criado para tomar a frente do trabalho físico e quando não cumpre essa tarefa, ele se sente um peso para Anne e Marilla. Seu personagem serve para pontuar a solidão e falta que uma família pode fazer. O grande mérito de Anne with an E é passar por todos esse temas de forma leve. Não existem discursos diretos, mas todas as lições são passadas com bons diálogos e interações entre os personagens.
O momento mais estranho da série é seu encerramento. Ao invés de uma cena bonita entre a família - algo esperado - o seriado termina com um gancho negativo, que pode até colocar todos em perigo. É algo que destoa de todo o resto da temporada, mas será interessante ver o desenvolvimento disso no segundo ano, que já foi confirmado pela Netflix. Seja como for, Anne with an E tem um grande potencial, principalmente se seguir os livros clássicos que mostram o crescimento de Anne até sua idade adulta.