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Crítica

Antes cínica, Disque Amiga Para Matar termina escolhendo o sentimentalismo

Última temporada assume definitivamente que apenas a amizade das protagonistas segura a história de pé.

19.11.2022, às 20H20.

Na sequência de abertura da série Disque Amiga Para Matar (uma tradução horripilante para o título original Dead To Me), uma vizinha “solidária” leva comida para Jen (Christina Applegate) esperando que seu gesto seja recebido com a comoção comum às pessoas que acabaram de sofrer uma grande perda. Contudo, Jen abre a porta com uma expressão fria, aceita a comida, faz comentários sarcásticos e encerra a visita deixando para o espectador qual será o tom dali por diante: puro cinismo.

Para contrapor a personalidade agressiva de Jen, o roteiro joga em seu colo a excêntrica Judy (Linda Cardellini), que se aproxima da viúva por pura culpa: Judy foi a responsável por atropelar o suposto defunto que agora Jen vela em um grupo de apoio para pessoas enlutadas. Para Judy tudo é energia e atmosfera. Para Jen tudo é um grande borrão de tristeza e pesar. As duas são completamente diferentes, mas através de eventos criminosos graves, vão construindo uma ligação que transcende os objetivos originais do roteiro, provocando uma inevitabilidade: não importa a coerência; importa que essa amizade seja celebrada.

É claro que assim como na vida (e a ficção tem suas raízes numa emulação da realidade), a evolução de uma pessoa faz parte do que podemos chamar de maturidade. Em seus dois primeiros anos, Disque Amiga Para Matar não escondeu que essa evolução aconteceria da parte de Jen, uma vez que Judy e suas boas intenções cósmicas eram um prato cheio para dar lições de afeto a quem tinha problemas para assumi-lo. Basta colocar a Jen daquele primeiro episódio diante da Jen que encontramos na terceira temporada... A Jen da cena com a vizinha na soleira da porta provavelmente zombaria da Jen que chora a cada duas cenas nesses episódios finais.

As escolhas da criadora Liz Feldman são previsíveis. Applegate e Cardellini alcançaram uma química em cena que protegeu a série de maiores problematizações. Nos bastidores, Applegate enfrentava um diagnóstico de esclerose múltipla (depois de já ter enfrentado um câncer) e sua amizade com Cardellini se tornou pública e notória, fazendo com que as emoções do público sobre Jen e Judy fossem ainda mais pungentes. Olhar para tudo isso provavelmente fez Feldman pensar: essas mulheres são mais importantes que o contexto que as trouxe até aqui. E essa foi uma afirmação hipotética levada a sério nesse último ano.

Dead to Us

Em muitos aspectos, os episódios finais da série são bastante equivocados. Os personagens coadjuvantes, a trama investigativa, a máfia grega, as relações secundárias... nada disso é tratado com seriedade pela espinha da temporada. Feldman assume que vai absolver as protagonistas dos crimes que cometeram; assume que aquele retrato suburbano branco e rico vai escantear a diversidade e colocar latinos, pretos e asiáticos em posições de quase figuração; assume que todas as brechas que poderiam punir Jen e Judy são contornáveis baseadas na discutível máxima de que o crime compensa se os mortos forem pessoas ruins.

Tudo que foi trabalhado nos anos anteriores fica tão esquecido que quando os gregos surgem para cobrar uma dívida que não tem mais nenhuma relevância, o roteiro resolve a “tensão” com uma cena que beira o pastelão desvairado. As pontas soltas que as mulheres deixam pelo caminho quando resolvem se dedicar apenas uma à outra, ficam pelo caminho mesmo... E o mais incrível é que provavelmente ninguém vai se importar com isso. Todos só querem admirar o amor que elas construíram desde aquele começo.

E para garantir essa emoção, Feldman continua no campo da obviedade. Algo surge para fragilizar Judy e algo surge para compensar Jen. São dois grandes eventos cravados do mais alto teor folhetinesco, mas que vão adiantando para o espectador quais são os planos para esse final: te fazer chorar. Era de se esperar que numa série que começou explorando o luto, o final também encontrasse escopo nessa mesma premissa. O sofrimento precisa ser parte do processo que transformou a Jen cínica numa Jen emotiva. A beleza da amizade das protagonistas realmente sensibiliza, mas é fato que parte da identidade da série já foi sacrificada.

Não podemos ser cínicos na hora de julgar a derrota do cinismo... isso é essencialmente estúpido. Quando os momentos finais de Disque Amiga Para Matar se apresentam para a audiência emocionada, grande parte dela já está conformada com a perda do humor sarcástico característico da série, abraçando as declarações sentimentais que estão ali para sublinhar que esse é o fim. Ainda há boas tiradas escondidas em uma ou outra cena (sobretudo na última aparição do grupo de apoio ao luto), mas a série não está mais interessada em te fazer sorrir.

Se é para celebrar Jen e Judy que você verá o último ano de Disque Amiga Para Matar, o espetáculo será todinho seu. Christina e Linda são dois baluartes da química cênica. A única coisa que não podemos dizer dessa temporada final é que ela não é emocionante. Ela poderia ser muitas outras coisas e não foi. Contudo, naquilo que decidiu ser, ela foi melhor do que todos poderíamos imaginar.

Nota do Crítico
Bom