Quando Batman Despertar revelou sua primeira sinopse, alguns fãs podem ter torcido o nariz por causa de sua premissa. Afinal, ver Bruce Wayne (Rocco Pitanga) como um patologista forense e não um bilionário que se veste de morcego está muito longe daquele Cavaleiro das Trevas com que estamos acostumados em gibis, filmes e séries. A estranha proposta do primeiro podcast roteirizado da DC para o Spotify, no entanto, funciona como a introdução perfeita para a Gotham apresentada por David S. Goyer (trilogia O Cavaleiro das Trevas) e para o mistério que move a história.
O cenário de Batman Despertar é, no geral, extremamente familiar: Gotham segue sendo uma cidade habitada por criminosos implacáveis, policiais corruptos e covardes e uma desigualdade brutal. Este mundo, no entanto, não é, em um primeiro momento, povoado nem pelo Batman e nem por seus inimigos fantasiados. Essas mudanças criam no ouvinte uma curiosidade imediata, elevada pela busca pelo perigoso Ceifador (Hugo Bonemer), serial killer que come pedaços de suas vítimas.
A todo momento, o audiodrama passa ao público a certeza de que algo neste cenário não está certo. Com dicas sonoras e pequenas passagens do roteiro, Batman Despertar confunde propositalmente o ouvinte, que se pega em um constante questionamento sobre o que é ou não real no contexto da narrativa, com a sanidade de Bruce sendo testada de diferentes formas a cada novo capítulo.
Enquanto o estudo de personagem de Batman Despertar é, sem dúvida, uma de suas principais forças, nada na série é tão atrativo quanto o desafio apresentado por seu mistério central. Como qualquer boa história de detetive, o podcast desafia seu público a montar um imenso quebra-cabeças, cujas peças nem sempre se encaixam de forma previsível ou lógica. Esse desenvolvimento pouco linear permite que o ouvinte compartilhe das angústias, dúvidas e até mesmo medos de Bruce, em uma experiência imersiva que poderia facilmente competir com algumas das melhores histórias do personagem nas páginas.
Sem o apoio visual dos quadrinhos ou de produções audiovisuais, Batman Despertar não evita diálogos expositivos, mas usa esses momentos de forma extremamente estratégica. Ao invés de se ater a prolixos discursos vilanescos ou narrações cansativas, Goyer faz bom uso de flashbacks para desenvolver os principais personagens da série sem tornar a história cansativa.
A versão brasileira, dirigida por Daniel Rezende e Marina Santana, também é extremamente bem-feita. Rocco Pitanga, por exemplo, constrói as personalidades de Bruce e Batman de forma cuidadosa, de forma que o bilionário e o vigilante se diferenciam, mas nunca se separam. O mesmo pode ser visto em Barbara Gordon (Tainá Muller) e na misteriosa Kell (Camila Pitanga), que, em Batman Despertar, ganham identidades únicas, mas que nunca traem o que foi construído por anos nos quadrinhos.
Mas é o Charada de Augusto Madeira que melhor representa o bom trabalho de Batman Despertar ao adaptar personagens icônicos. Charmoso, irônico e, graças à ótima interpretação do ator, extremamente intimidador, o vilão tem no audiodrama uma das melhores caracterizações que já recebeu fora dos gibis. Cada diálogo do personagem é proferido cheio de nuances e duplos sentidos por Madeira, que transforma o Charada em uma figura arrepiante.
Primeira empreitada da parceria entre DC e Spotify, Batman Despertar une o novo e o clássico para criar um thriller típico do Cavaleiro das Trevas, ao mesmo tempo em que deixa a porta escancarada para a chegada de novos fãs. Conciso e bem produzido, o audiodrama crava seu espaço como uma das melhores adaptações recentes do Cruzado Encapuzado.