O anúncio de que Belas Maldições teria uma segunda temporada no Amazon Prime Video pegou muitos fãs de surpresa. Afinal, ao contrário do ano de estreia, essa continuação não teria nenhum tipo de material-base para ser adaptado, o que poderia ser encarado como uma tentativa cínica do streaming de explorar uma propriedade intelectual rentável recém-descoberta. Os novos episódios, no entanto, deixam claro que essa sequência é resultado de desejo pessoal de Neil Gaiman, que assina o livro original com Terry Pratchett, de desenvolver o relacionamento de Crowley (David Tennant) e Aziraphale (Michael Sheen) para além do subtexto e não uma mera exploração sem propósito.
Se no ano anterior impedir o apocalipse caracterizava o grosso da trama de Belas Maldições, enquanto a relação entre o anjo e o demônio protagonistas serviam à trama, a segunda temporada inverte essa dinâmica, deixando o embate celestial como mero pano de fundo para a construção de seu romance central. Não que haja uma falta de história no novo volume, mas a dinâmica entre Crowley e Aziraphale é tão atraente que, mesmo que Gabriel/Jim (Jon Hamm) nunca tivesse descido à Terra, a série seguiria encantando sem dificuldades. O vai-não-vai entre dois é construído com parcimônia e, seja no início dos tempos ou na Londres contemporânea, o carinho entre eles é perceptível, com Sheen e Tennant desempenhando seus respectivos papéis com maestria, apoiados no ótimo texto de Gaiman.
O mesmo pode ser dito do núcleo humano deste novo ano. Presente até demais na temporada de estreia, os mortais agora aparecem representados basicamente apenas por Maggie (Maggie Service) e Nina (Nina Sosanya), que, ao contrário de Newton (Jack Whitehall) e Anathema (Adria Arjona), complementam a história de Crowley e Aziraphale ao invés de apenas desviar as atenções. Assim como o quase-casal principal, as duas lojistas são escritas especialmente para a geração de shippers online, com cada episódio aproximando e distanciando-as antes de levar esse flerte à sua conclusão inevitável.
A ambientação de Céu e Inferno também cumpre muito bem sua missão de criar uma identificação no espectador. Mais do que dar personalidade aos planos divinos, o funcionamento das repartições entrega um cenário assustadoramente relacionável para qualquer um que já tenha lidado com a burocracia sufocante de administrações públicas e privadas. Mesquinhos e muitas vezes incompetentes, os anjos e demônios de Belas Maldições transformam em risadas a frustração de todo trabalhador ou cliente que já teve que lidar com pessoas despreparadas atrapalhando suas funções diárias.
Quem também encanta nesse segundo ano são Muriel e Gabriel/Jim. Por melhores que Tennant e Sheen sejam na pele dos protagonistas, a inocência trazida por Quelin Sepulveda e Jon Hamm aos seus respectivos papéis carrega o tom cômico de Belas Maldições e serve como o contraponto perfeito para as manipulações de Céu e Inferno. Eles divertem com suas presenças sorridentes e, ainda que o foco em Crowley e Aziraphale mantenha seu protagonismo, são os dois anjos estacionados na Terra que dão à temporada uma simpatia convidativa.
A única inconstância no segundo ano está nas histórias paralelas que recontam o passado de Crowley e Aziraphale. Alternando altos muito altos, como a história de Jó (Peter Davidson) e as provações que lhes foram impostas por Deus (Frances McDormand), e baixos muito baixos, como a apresentação de mágica do anjo de Sheen nos anos 1940, os flashbacks tomam um tempo excessivo dos episódios, com alguns tornando-se maçantes já em seus primeiros segundos. Embora sejam, em sua maioria, divertidas, essas sequências passadas eventualmente deixam de ser complementos à história principal para se tornar barrigas narrativas.
Neil Gaiman para zoomers
Talvez a principal glória de Belas Maldições, tanto na primeira quanto na segunda temporada, é a forma como Gaiman atualiza seus personagens e narrativas para vendê-los a uma nova geração. Assim como fez para a Netflix em Sandman, o showrunner entende que, embora não possa alienar fãs de longa data, a sobrevivência da produção está na conquista de um público majoritariamente alheio à obra original. Bem atuante nas redes sociais, o autor parece acostumado com a dinâmica e linguagem da Geração Z e molda seus personagens a esse novo público sem descaracterizá-los.
Mais do que isso, Gaiman vai na contramão de outros showrunners “de franquia”, como Greg Berlanti, Bryan Fuller ou Roberto Aguirre-Sacasa, recusando-se a subestimar a inteligência de seu público jovem. Sem explicações verborrágicas para conceitos óbvios ou uso forçado da linguagem de internet para parecer cool com a criançada, o roteirista raramente se apoia em construções que apelem para um engajamento de Twitter e, quando o faz, é de uma maneira que faz sentido para a proposta de sua série.
O maior exemplo dessa capacidade do autor é, obviamente, o romance de Crowley e Aziraphale. Seria fácil para Gaiman apostar todas as suas fichas apenas na química de Tennant e Sheen, tão afiada aqui quanto nas três temporadas de Staged. Mas ele opta por transformar o ship Aziracrowley em algo muito mais importante do que apenas mais um casal raso escrito para a twittersfera, e transforma o relacionamento dos dois no centro de sua comédia romântica divina. Mais do que uma simples “roupagem moderna”, o showrunner dá a Belas Maldições uma relevância contemporânea que nem mesmo seu livro original com Pratchett teve quando foi lançado em 1990.
Concebida livremente por Gaiman, a segunda temporada de Belas Maldições supera até as melhores expectativas que a cercavam. Ótima expansão da história de eterna rivalidade entre Céu e Inferno, o novo ano deixa as portas ainda bem abertas para pelo menos mais uma temporada. E, tomando os episódios de 2023 como base, não parece nada arriscado se manter otimista para o inevitável retorno de Crowley, Aziraphale e seu romance inefável.