Cena de Black Bird (Reprodução)

Séries e TV

Crítica

Black Bird é aula de como fazer true crime com responsabilidade e precisão

Série do Apple TV+ é apropriadamente sóbria e sabe o quanto estender sua narrativa

09.08.2022, às 13H11.
Atualizada em 31.08.2023, ÀS 12H35

Há algo em comum entre os mais recentes projetos de Dennis Lehane na TV. O venerável roteirista e romancista americano, autor de Sobre Meninos e Lobos e Ilha do Medo, tem criado (ou ajudado a criar) na telinha uma galeria de histórias que exploram a derrocada do sonho americano, jogando luz no sombrio e no macabro escondidos em paisagens consagradas da mitologia do país: ruazinhas suburbanas imperturbáveis, intermináveis plantações verdejantes distribuídas em quadrados perfeitos pelos estados do Meio-Oeste, prédios institucionais sisudos de concreto cinza e branco.

Em suas contribuições para Mr. Mercedes e The Outsider, Lehane explorou as entranhas desses cenários e desvelou como a decadência econômica e o descaso social criam e alimentam os monstros que existem nelas; como ambas eram adaptações de Stephen King, esses monstros tendiam ao literal. Black Bird é, em muitos sentidos, a evolução natural desse processo proposto pelo roteirista, fugindo da alegoria para firmar-se no real. Não é à toa, afinal, que esta é a primeira vez que ele é creditado como criador e produtor de uma série de TV.

A trama acompanha Jimmy Keene (Taron Egerton), que é preso por tráfico de drogas, mas recebe uma proposta tentadora do FBI, representado pela agente Lauren McCauley (Sepideh Moafi): infiltrar-se em uma prisão de segurança máxima e fazer amizade com Larry Hall (Paul Walter Hauser), suspeito de vários assassinatos de jovens garotas por todo o Meio-Oeste americano, a fim de extrair dele uma confissão ou detalhes dos crimes que impeçam sua soltura em liberdade condicional. Em troca, Keene teria sua sentença de 10 anos comutada, e poderia cuidar propriamente do pai Big Jim (Ray Liotta), então com a saúde fragilizada.

A história é real, e Lehane se baseou em um livro do próprio Keene (também produtor da minissérie) para escrever Black Bird - localizando-a, assim, no saturado e delicado território do true crime. As armadilhas do nicho são muitas, e representadas facilmente por produções recentes de vários serviços de streaming: estender-se demais em detalhes sonolentos (vide The Girl from Plainville, do Starzplay), explorar de forma insensível e sensacionalizar uma história de sofrimento (vide A Irresistível Face do Mal, da Netflix), se enredar demais em teses de culpa ou inocência (vide A Escada, da HBO Max), e por aí vai.

A produção do Apple TV+, no entanto, dança ao redor dessas e de outras arapucas com uma resolução admirável. Lehane se mostra, em Black Bird, um contador de histórias que faz da precisão, talvez até da economia, a sua melhor arma. Com modestos seis episódios, a minissérie só tem tempo para o crucial de sua trama e da constituição de seus personagens, exigindo um texto cortante, que nos mostre a natureza deles e de suas relações com contundência. Black Bird não é apressada, mas não gasta minutos preciosos como histórias e ideias que não levarão a lugar nenhum - tudo está aqui por um motivo.

Ao mesmo tempo, o roteirista e seu trio de diretores (Michäel R. Roskam, Jim McKay e Joe Chappelle) tratam de comunicar o coração sombrio de sua história, a gravidade e o pesar no qual ela está envolvida. A minissérie não é opressiva ou agonizante em sua linguagem visual, mas sabe, por exemplo, evocar a monstruosidade de Hall sem agigantá-lo, torná-lo um objeto de mística ou fascinação. Pelo contrário: recortado em silhueta contra a janela da prisão ou apoiando-se sugestivamente em paredes, o Hall do brilhante Paul Walter Hauser, todo tiques inquietantes e olhares doentios, é assustador justamente por ser só um homem. 

Black Bird sabe também como e quanto adentrar nas perdas irreparáveis, no luto infindável que os atos de Hall causaram. Ao invés de expor, explorar e teatralizar a dor de quem ficou para trás, como tantas obras de true crime fazem, Lehane escolhe um episódio (o quinto da minissérie) para inserir flashes breves, muito mais ilustrativos do que dramáticos, de quem essas garotas eram ou poderiam ter sido. O restante de Black Bird, enquanto isso, é preenchido até a boca por… ausência. 

Há um senso profundo de vazio nos cenários que Roskam, McKay e Chappelle filmam, e na forma como eles fazem seus personagens se movimentarem por eles. É um sentimento muito mais envolvente e real do que dezenas de cenas de choro poderiam transmitir, e engrossa também a exploração consternada que Black Bird faz do papel desempenhado pela masculinidade tradicional nas violências e distanciamentos que permeiam o mundo distintamente americano de Lehane - mas, nem por isso, totalmente irreconhecível para quem o assiste em outros lugares.

Esse vazio todo, afinal, é criado pelas mãos dos homens que regem as instituições e interações do mundo, e que impedem que o espaço seja preenchido por outros ou vencido pela compaixão. Alugando o espaço do true crime para contar uma história que é muito mais do que seu apelo superficial, Black Bird mostra que não há subgênero desgastado demais, ou tóxico demais, para um escritor com uma boa dose de habilidade e uma ainda maior de consciência.

Nota do Crítico
Excelente!