Os últimos 15 minutos de Bom Dia, Verônica poderiam facilmente ter saído direto de uma graphic novel criminal ultraviolenta publicada pela Dark Horse ou pela Vertigo. Sem entregar demais do desfecho da série da Netflix, dá para dizer que o roteirista Raphael Montes e o diretor José Henrique Fonseca se juntam para construir um clímax catártico, abandonando de vez a pretensão do thriller policial realista que ambos frequentemente tentaram segurar durante as duas temporadas anteriores. Ao invés disso, o terceiro ano faz bem ao abraçar os prazeres do vigilantismo quadrinesco, se entregando no final ao formalismo de uma cena de ação banhada em luz vermelha, intercalada por um zoom quase tarantinesco nos olhos do vilão Jerônimo (Rodrigo Santoro, tipicamente ótimo no papel).
É a culminação perfeita de uma temporada final em que Bom Dia, Verônica aos poucos se despe de pretensões dramatúrgicas elevadas - principalmente porque não tem tempo para elas. Se do primeiro para o segundo ano o corte de oito para seis episódios já se provou uma bênção, o fato desta terceira temporada ter decidido dividir este número ainda pela metade se prova exponencialmente mais fortuito. Com três capítulos que totalizam menos de 3h de conteúdo, Bom Dia, Verônica confirma o que já era óbvio: os personagens arquetípicos e as resoluções fáceis do texto de Raphael Montes sempre tiveram mais ensejo de longa-metragem do que de televisão serializada.
Falando desse jeito, até parece que estou querendo diminuir o trabalho do roteirista, mas não é o caso. Trafegar em emoções e elaborações temáticas elementais não faz um mau contador de histórias - de fato, fazer isso bem presume um conhecimento de meio e uma autoconsciência que faz falta a muitos artistas de inclinação mais acadêmica. Montes é ótimo no que faz, e o que ele faz nesta terceira temporada de Bom Dia, Verônica é criar um suspense que prospera no ritmo alucinante que impõe para si mesmo, que deita e rola em sua potencialidade de choque, que constrói os traços mais envolventes de sua dramaturgia a partir da mistura de perturbação psicológica e denúncia social que sempre foi o seu forte.
Nesse pique de se assumir meio que uma história de super-heroína, uma fantasia catártica de retribuição para além da Justiça, a série também abre espaço para os atores pintarem seus personagens em cores mais fortes. Tainá Müller, que sempre demonstrou dificuldade para construir Verônica como sujeito ficcional crível, se mostra muito mais apta a desenhá-la como símbolo, extrapolando escolhas visuais que já eram fortes (a franjinha loira da personagem já é icônica, sinto dizer) em gestos cada vez mais amplos de cena, desaguando nos segundos finais da série em um sorriso de lado que ressoa com energia renovada por cima das revelações do passado perturbador da personagem.
Enquanto isso, no contínuo estabelecido por Bom Dia, Verônica - que desde a primeira temporada escala ex-galãs icônicos da dramaturgia brasileira para subverter suas imagens na pele de homens abusivos -, Santoro representa o adversário mais pateticamente humano da protagonista. Entre a ameaça crua projetada por Eduardo Moscovis e o carisma perigoso de Reynaldo Gianecchini (que retorna para uma performance ainda mais expansiva, e ainda melhor, nessa terceira temporada), Santoro escolhe fazer do seu Jerônimo um sujeito que se força a ser iludido pelas próprias mentiras, que busca aliviar feridas profundas com a noção equivocada de superioridade física e espiritual. Ele é desprezível, sabe disso, mas faz de tudo para fingir que não sabe.
Ele também representa, é claro, o fechamento da trindade de vilões institucionais da série. Primeiro, a polícia (o Brandão de Moscovis era sargento); depois, a religião (o pastor Matias de Gianecchini); agora, os grandes poderes econômicos (Jerônimo é empreendedor multimilionário do agronegócio). A maior virtude de Bom Dia, Verônica, como drama social, é desvelar o abuso escondido nesses pilares fundamentais da sociedade contemporânea - ou talvez seja até mais adequado dizer habilitado por eles, porque a série parece argumentar, como é da natureza das histórias de vigilantismo, que sempre haverá algo de perverso para sua heroína combater nesses sistemas.
Embora Verônica proclame não estar sozinha nos momentos finais da sua jornada, e embora a série faça tributo ao poder da comunidade que ela cria ao seu redor, no fim das contas Bom Dia, Verônica também se aproxima dos quadrinhos de super-herói por reconhecer que a “luta contra o mal” nunca tem fim. Isso porque a próxima edição precisa estar garantida, é claro, mas também porque, uma vez que seus mocinhos e mocinhas resolvessem os problemas do mundo ao seu redor, essas histórias perderiam sua razão narrativa e social de existir, como catarse para um público impotente diante das mazelas de sua própria realidade. Ao se assumir como uma dessas fantasias, talvez paradoxalmente, Bom Dia, Verônica parece finalmente ter entendido sua verdadeira força.