Embora Brooklyn Nine-Nine não tenha dado origem à “fórmula Michael Schur de sitcom contemporânea” (é possível argumentar que The Office ou Parks and Recreation cumpriram esse papel), ela talvez tenha se tornado a encarnação mais essencial dessa fórmula. Nas oito temporadas que passou no ar, e no sucesso discretamente ascendente que acumulou durante essa trajetória, Brooklyn definiu melhor que nenhuma outra série o humor bem-intencionado, superficialmente bobo, mas fundado em uma construção detalhista de personagem que também se destaca quando a história ousa enveredar pelo drama, que caracteriza as produções de Schur.
Esse espaço amplo de manobra entre a comédia e o “falar sério” se mostrou fundamental para Brooklyn Nine-Nine ter uma despedida digna. Isso porque, no intervalo entre a sétima e a oitava temporadas da sitcom, o assassinato de George Floyd e os protestos ao redor do mundo contra a brutalidade e o racismo policial mudaram crucialmente a atitude do público em relação à própria instituição que serve de cenário para a série. Os eventos levaram a uma reimaginação completa da última temporada, que ganhou novos roteiros dando destaque à possibilidade da reforma policial e às fundamentais falhas da polícia como autoridade.
Uma comédia com menos tato do que Brooklyn teria desmoronado diante do desafio de abordar esses temas e ainda manter o público gargalhando. Mas essa é uma série que já mostrou suas credenciais ao falar de bifobia, assédio sexual e até do próprio racismo policial em episódios anteriores - a diferença aqui é que a discussão, normalmente centrada em um “capítulo especial”, é cuidadosamente distribuída durante dez episódios, tornando-se uma das várias linhas narrativas que correm de forma concomitante aos casos isolados desta última temporada, e amarram a despedida dos personagens com habilidade.
Logo em “The Good Ones” (8x01), descobrimos que Rosa (Stephanie Beatriz) decidiu se demitir da polícia após os protestos de 2020, estabelecendo uma agência de investigação particular em que, entre outros casos, tenta ajudar vítimas de violência policial. O capítulo é parcialmente centrado no conflito entre ela e Jake (Andy Samberg), que luta para entender que a decisão da amiga é maior do que uma ofensa pessoal a ele, que se considera “um dos bons policiais” - e, durante os 20 minutos do capítulo, descobre o quão insignificante é essa distinção pessoal diante dos problemas sistêmicos da polícia e os impactos que eles causam.
Brooklyn Nine-Nine faz um bom trabalho, durante toda a 8ª temporada, ao mostrar exatamente isso: um problema social, estrutural, não pode ser resolvido, ou sequer abordado de forma honesta, em um nível individual. Em “The Set Up” (8x06), por exemplo, vemos como Jake - mesmo sendo, fundamentalmente, uma boa pessoa - abusa dos poderes dados a policiais em nossa sociedade para perseguir uma pessoa inocente, e como o sistema (no caso, o sindicato de policiais) não está ali para proteger a pessoa inocente, mas sim proteger ele, Jake, das consequências de seus atos.
Como fez com todos os tópicos delicados que abordou antes, Brooklyn combina esse entendimento essencial da seriedade do assunto com várias brincadeiras semânticas geniais que sempre (sempre) resultam em zombaria contra aqueles que se colocam no caminho do progresso. A figura caricatural do chefe do sindicato de policiais, vivido brilhantemente por John C. McGinley, é só o exemplo mais recente de retratos similares que a série fez de personagens do tipo - d’O Abutre (Dean Winters) ao policial da velha guarda Jimmy Brogan (Stacey Keach), passando até pelo pai de Jake (Bradley Whitford).
A equipe da série ainda é certeira ao costurar essa narrativa com momentos de transformação fundamentais para os personagens. Especificamente, vemos Jake e Amy (Melissa Fumero) com dificuldades para conciliar o trabalho e a criação do filho, Mac; o capitão Holt (Andre Braugher) enfrentando uma crise em seu casamento com Kevin (Marc Evan Jackson); e vários outros momentos menores que colocam os protagonistas em rotas que, quando chegamos aos episódios finais, transformam fundamentalmente o status quo do esquadrão de polícia, e conduzem a série naturalmente para o seu final.
Com performances especialmente brilhantes de Samberg e Braugher, que entendiam os ritmos cômicos e relações dramáticas de seus personagens melhor do que grande parte dos atores no ar atualmente na TV americana, Brooklyn Nine-Nine teve um finale cheio de reviravoltas, deliciosamente caótico - mas satisfatório, no fim das contas, justamente por sua diligência em contar uma história envolvente e necessária por baixo de todas as piadas. Um final que diz muito sobre a série que ela foi por todas suas oito temporadas.