“Eu não sou um monstro, Jake”, diz o boneco título da série Chucky em uma das cenas mais printadas, tuitadas e retuitadas da primeira temporada. Mas ele é um monstro, claro - a graça de Chucky, criada e conduzida pelo idealizador da franquia Brinquedo Assassino, Don Mancini, é justamente como ela vê a monstruosidade de todos os seus personagens, se diverte com ela, e se permite sentir por todos esses monstros mesmo assim.
Nesta mesma cena, Chucky (na voz icônica de Brad Dourif, cada vez melhor no personagem) diz ao jovem Jake (Zackary Arthur) que tem um filho queer, como ele. A referência a Glen/Glenda, visto em O Filho de Chucky (2004), é parte de um jogo de sedução (i)moral empreendido por Chucky, que chega à vida de Jake com a intenção de transformá-lo em um assassino como ele. Para isso, o boneco observa e usa como combustível as opressões sofridas pelo rapaz, alvo de bullying por sua homossexualidade, propensão artística incompreendida e timidez.
Se apresentando como aliado, Chucky oferece a violência como alternativa à aceitação tácita que Jake praticou até então. Mancini sabe que está mexendo, aqui, em um debate não só historicamente carregado, como também bastante atual, mas ele entende que seu papel como contador de histórias não é dar uma resposta ética pronta ao espectador, e sim apresentar personagens humanos o bastante para que a dúvida faça sentido, para que embarquemos com eles na exploração dessa questão espinhosa. E isso ele faz com destreza acima da média.
Chucky, a série, herda da franquia cinematográfica que a precedeu um gosto irresistível pela vulgaridade. Os dilemas e pecados de seus personagens, assim como suas punições, nunca são megalomaníacos. Ao invés disso, Mancini e cia. tiram um prazer perverso do ato de expor a banalidade dessas pessoas, a facilidade com a qual elas recorrem à maldade e à enganação umas com as outras. Igualando os vícios de assassinos e vítimas em seu slasher estendido, a equipe criativa da série garante a imprevisibilidade da trama (quando não há heróis, é difícil saber quem vai sair vivo da temporada), e também a carta branca para passear dubiedades morais em tela.
Esse lado subversivo, exagerado e cômico de Chucky convive o tempo todo com uma vontade genuína de retratar um grupo de jovens emocionalmente desamparados pelas estruturas familiares ao seu redor. Jake e os outros protagonistas adolescentes da série estão presos com figuras paternas e maternas falhas, que moldam as neuroses de seus filhos de maneiras diferentes: ou não prestam atenção o suficiente a eles, gerando uma revolta com o mundo e uma necessidade de ser o centro dos holofotes; ou prestam atenção demais, pressionando-os a assumir papéis e identidades indesejadas, sufocando quem eles realmente são.
De certa forma, esses jovens não são peixes fora d’água em uma franquia que já heroizou figuras como Andy (Alex Vincent) e Nica (Fiona Dourif) - ambos, inclusive, voltam aqui para reforçar esses paralelos. Mas sempre faltou tempo aos filmes de Brinquedo Assassino, preocupados com as peripécias assassinas de Chucky e Tiffany (Jennifer Tilly), para de fato desenvolver esse texto. O formato televisivo elimina esse problema, já que há minutos o bastante para preencher com deboche e sinceridade, e para que eles existam lado a lado sem atrapalhar a fluidez da narrativa.
Chucky, no fim das contas, mostra a melhor versão do Brinquedo Assassino, uma versão que está há mais de 30 anos implorando para acontecer. Sorte a nossa que essa hora chegou.