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Séries e TV

Crítica

Cobra Kai usa o passado para preparar o futuro em 4ª temporada emotiva

A partir do retorno de um velho vilão, série da Netflix abraça mudanças para garantir sobrevida

31.12.2021, às 15H15.
Atualizada em 28.02.2024, ÀS 00H47

Quem dá de ombros para Cobra Kai por conta de seus diálogos truncados e artificiais, sua seleção musical assumidamente brega de hits do hard rock oitentista e sua trama pouco verossímil sobre adolescentes que resolvem todos os seu problemas na porrada — e, como resultado, encontram muito menos resistência de seus pais ou da Lei do que deveriam — está perdendo um dos trabalhos mais inteligentes de desenvolvimento de personagens da atualidade. Partindo do resgate da rivalidade entre Daniel LaRusso (Ralph Macchio) e Johnny Lawrence (William Zabka), mas agora invertendo o ângulo visto em Karate Kid - A Hora da Verdade (1984) para o do então antagonista, a série da Netflix direcionou o mote da franquia a uma quase inesgotável discussão sobre equilíbrio, dualidade e aceitação das diferenças.

Só que três temporadas se passaram e, depois de reposicionar as peças de xadrez que compunham o conflito de dois dos três filmes focados em LaRusso, restava a este quarto ano da série mergulhar no mais famigerado título da trilogia, Karate Kid 3 - O Desafio Final (1989). Vítima da saturação comercial da franquia, ele é considerado o mais fraco da saga por trair justamente aquilo que os showrunners Jon Hurwitz, Hayden Schlossberg e Josh Heald mantêm sempre sob controle na série de TV: a caracterização de seus personagens. A trama oitentista via LaRusso se revoltar contra o pacifismo de Mestre Miyagi (Pat Morita) e, mesmo após as lições aprendidas nos dois longas anteriores, ir treinar no dojô Cobra Kai. Tudo fazia parte dos planos do inédito vilão Terry Silver (Thomas Ian Griffith), um amigo antigo do inescrupuloso sensei John Kreese (Martin Kove) que ressurgia para ajudá-lo na vingança contra o garoto e Myiagi, mas era difícil comprar a trama pelo que ela apresentava. Involuntariamente cômico em diversos momentos e deficiente do sentimentalismo honesto que fez dos dois filmes anteriores aqueles pipocões do coração, o encerramento da trilogia Karate Kid era terreno incerto para a construção de novos dramas; especialmente agora, quando a produção televisiva pede uma virada para continuar entretendo.

Escalada com precisão para dividir o foco narrativo de Cobra Kai com LaRusso e Lawrence, a nova geração de atores da franquia já não é mais tão nova depois de três temporadas, o que faz com que a continuidade da série a longo prazo fique dependente de renovação. Graças a isso, e considerando a inspiração direta em um filme que representou um encerramento de ciclo da franquia, a quarta temporada se anunciava como responsável por mais uma vez buscar um difícil equilíbrio: entre o retorno de um infame vilão, diretamente ligado ao núcleo de personagens veteranos, e o desfecho de conflitos antigos do núcleo jovem; quem sabe, assim, permitindo que a quinta temporada (já com gravações encerradas) se encarregasse de tomar os rumos do futuro. Logo, que Hurwitz, Schlossberg e Heald conseguiram não só atingir esse equilíbrio, como também já começar o processo de mudanças que sinaliza um novo fôlego para a série, é só mais uma prova da inteligência do trio por trás de Cobra Kai.

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Em termos de engenharia narrativa, o mais novo ano da série é indubitavelmente o mais arrojado até aqui. Partindo do retorno de Terry Silver, convocado por Kreese para ajudá-lo a enfrentar a união entre os dojôs Miyagi Do, de LaRusso, e Presa da Águia, de Lawrence, a série consegue provocar reverberações em todos os núcleos personagens. Apostando em alternativas à violência direta entre os dojos (limitada por um acordo entre os grupos que a reserva apenas ao season finale no Torneio All Valley de Karatê Sub-18), o clima do novo ano é mais moroso do que o da terceira temporada — o que abre espaço para uma "Guerra Fria" interessante, onde os personagens são confrontados mais emocionalmente do que fisicamente —, dando corpo e espaço necessários para a reinvenção de Silver como maior ameaça da saga até hoje.

Se a terceira temporada dedicou tanto tempo de tela aos flashbacks de Kreese na Guerra do Vietnã, é no quarto ano que colhemos os frutos desse investimento: entendendo o laço de sangue entre ele e Silver, bem como os caminhos deturpados existentes na mente do antigo sensei de Johnny Lawrence, fica mais fácil comprar a evolução proposta pela série à relação da dupla. Um vilão unidimensional e caricato no filme de 1989, o personagem de Ian Griffith ressurge totalmente humanizado na série, onde entendemos que seus excessos cartunescos eram fruto de um vício irrefreável em cocaína, e o reencontramos medicado, pacífico e conformado a uma vida junto à aristocracia moderna de Los Angeles. O chamado para retornar a Cobra Kai surge não só como um artifício disruptivo a esse estilo de vida, mas também à saúde mental do personagem, fazendo dele um vilão complexo e capaz de despertar empatia — além de, surpreendentemente, ajudar a finalmente humanizar o até então plenamente vilanesco Kreese.

Essa busca pelo desafio constante aos seus personagens e à visão sobre eles é o que faz com que Cobra Kai siga interessante e estimulante mesmo quando parece mergulhar em repetições. Se a terceira temporada parecia pesar com o risco de uma burocracia narrativa em redenções e quedas sem propósito, o quarto ano usa esse sentimento de incerteza para surpreender o público duplamente: abraça de vez a reciclagem de ciclos como um mote temático por si só, criando expectativas anti-climáticas que potencializam a satisfação vinda de eventuais quebras. Soa confuso? É basicamente o que Game of Thrones falhou em fazer depois que ficou manjada a ideia de sempre esperar a morte dos personagens mais queridos. E funciona porque está sempre enraizado no progresso emocional (ou na falta dele) que acompanhamos em cada figura da série, episódio a episódio.

No núcleo jovem, é o quarteto Tory Nichols (Peyton Roi), Samantha LaRusso (Mary Mouser), Falcão (Jacob Bertrand) e Robby Keene (Tyler Buchanan) que melhor exemplifica esse trato, com arcos emocionais pintados em diferentes tons de cinza reposicionando conflitos internos e externos entre eles e o público. Keene, em especial, finalmente sai da posição de para-raios de antipatia e ganha corpo não só em termos de personalidade, mas como peça-chave para todo o conceito de  equilíbrio à la Yin e Yang que LaRusso e Lawrence repetidamente falham em concretizar por causa do passado. Colocado em posição de poder escolher como se posicionar no conflito, ele desponta na temporada como uma inesperada voz da razão em diversos momentos, lutando contra sua própria consciência para compreender a liberdade que isso pode trazer e protagonizando uma das cenas mais emotivas do novo ano. Aproveitando o vácuo aberto por esse arco, Hurwitz, Schlossberg e Heald ainda a usam como trampolim para a necessária renovação da trama.

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É porque Keene protagoniza uma inesperada aliança com o carismático Kenny (Dallas Dupree Young), jovem garoto cuja história de vida espelha a jornada de Daniel LaRusso no filme original de Karate Kid, mas que é ironicamente vítima do bullying promovido por Anthony LaRusso (Griffin Santopietro). O filho caçula do protagonista clássico finalmente tem tempo de tela para ser expandido a um personagem de verdade, e fica claro que ele, Kenny, e a intimidadora novata Devon (Oona O’Brien), apresentada como curinga em uma série que carece de mais personagens femininos com profundidade, serão os responsáveis por conduzir Cobra Kai no futuro.

Em meio a tantas novidades, quem sai ofuscado é o queridinho dos fãs Miguel Diaz (Xolo Maridueña), mas até isso é feito de forma honesta e consciente pela série. Depois do drama com sua coluna na temporada anterior, o personagem acaba dedicado a reparar não os danos físicos, mas sim os psicológicos deixados desde então. Aliado à condução complicada da relação com seu "sensei Lawrence" (que, por si só, lida com o relacionamento que nasceu com a mãe de Miguel, Carmen, vivida por Vanessa Rubio), esse drama acaba relegando ao personagem uma importância secundária, mas de forma natural. Brilhando muito mais em cenas dramáticas do que no tatame, essa escolha é compensada pela promessa de fortes emoções no próximo ano, envolta em um clima de despedida.

Admitindo, com esses e outros elementos, que mudanças mais radicais serão inevitáveis para a continuidade da série, Cobra Kai nos confortar com a coragem de enfrentá-las segundo a compreensão dos elementos-chave que a fazem tão cativante: a nostalgia a serviço dos personagens; os personagens a serviço da evolução da trama; a trama a serviço do conflito construtivo aos personagens. Além de agregar valor a cenas e dramas emprestados de temporadas e filmes passados, esta quarta temporada abre de forma competente esse espaço para o novo sem nunca deixar de divertir, entreter e, mais do que nunca, emocionar. De quebra, ainda consegue costurar surpresas que estão ali só para afagar os fãs mais apaixonados, entre retornos de personagens e participações especiais que colocam o "service" no "fan" sempre com classe e propósito. Para uma saga que há muitos anos estava nocauteada, é uma conquista vê-la viva por um quarto round, ainda lutando e desferindo golpes certeiros. Que venham os próximos!

Nota do Crítico
Ótimo