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Crítica

Cowboy Bebop, da Netflix, é decepção amarga mesmo com homenagens ao anime

Live-action da Netflix parece não entender essência que consagrou obra de Shinichiro Watanabe

18.11.2021, às 20H30.
Atualizada em 19.11.2021, ÀS 10H41

O processo de conhecer uma pessoa nova guarda um encanto pouco comparável a qualquer outra coisa da vida. Há algo inebriante em construir uma imagem precipitada e vê-la sendo refeita pela intimidade, para só aí decidir se a verdade é tão apaixonante quanto a ilusão. É a compreensão desse processo vagaroso, mas altamente recompensador, que alicerça Cowboy Bebop, um dos animes mais influentes de todos os tempos. É também a total inabilidade em entender e preservar esse trunfo que faz da série de TV homônima da Netflix, que adapta a animação japonesa para o live-action, um desperdício de tempo e talento.

Lançada em 1998, a genial obra de Shinichiro Watanabe já se apresenta pronta desde o primeiro de seus 26 episódios, com um universo futurista intrincado a pleno vapor em suas estruturas e tradições. Relegando a imediata apresentação desses componentes a suntuosas (e silenciosas) representações visuais, Cowboy Bebop não fica explicando o que não é essencial saber de início, porque tudo se dá a partir da ação já em movimento, e espera o espectador estabelecer uma relação mínima com os personagens para responder perguntas que só serão formuladas mais tarde. Assim, invoca um investimento emocional intenso nas surpresas e subversões que guarda em sua mistura de gêneros, temas e influências. Não à toa, afirma em seu manifesto de abertura ser “a obra, que se tornará um novo gênero em si”.

Por toda a complexidade que introduz em sua projeção de futuro, Cowboy Bebop compreende que precisa apresentar sua premissa com simplicidade, para equilibrar a balança. Logo, sob um ar descompromissado, promete aventuras espaciais episódicas com uma dupla disfuncional: os "cowboys espaciais" Spike Spiegel e Jet Black, caçadores de recompensa que cruzam as estrelas a bordo da nave Bebop, em constante busca por serviços rentáveis.

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À medida que a tripulação da Bebop aumenta, porém, se acumulam sinais de que a simplicidade dos protagonistas, aparentes arquétipos anti-heróicos recorrentes no cinema e da TV, é só falta de intimidade. Como aconteceria no amadurecimento de qualquer relação humana, é com o tempo que Spike, Jet, Faye Valentine, Ed e até o cachorro Ein se revelam seres tridimensionais. Paralelamente, o complexo mundo futurista da animação vai se tornando mais compreensível, em uma contraposição de experiências que reforça de forma ativa o interesse do espectador.

Após 26 episódios, Cowboy Bebop deixa claro que o emprego de tropos de sci-fi, faroeste, film noir, cinema de horror, longas de artes marciais, além de uma estética constantemente informada pelo encontro musical de opera rock, jazz contemporâneo e bossa nova, se prestam a celebrar e refletir sobre a condição humana; as escolhas, conquistas, derrotas e decepções que formam a identidade única de cada indivíduo. Não é à toa que a ideia da Netflix de recriar essa rica narrativa em live-action gerou desconfiança entre alguns fãs. Por conta do seu referencial no imaginário americano, Cowboy Bebop foi o primeiro anime favorito de muita gente nos EUA na virada do século XXI. Sem o argumento de que a nova versão serviria para acender o interesse por uma produção que sempre foi popular internacionalmente, o remake precisaria se justificar de outra forma — ou admitir-se enquanto puro artifício comercial.

A saída encontrada pelo produtor André Nemec (Missão Impossível: Protocolo Fantasma) e pelo time de roteiristas encabeçado por Christopher Yost (The Mandalorian) foi prometer que a série daria mais espaço para uma exploração plena de todos os personagens, revelando mais não só sobre Spike, Jet e Faye, mas também sobre Vicious, o grande antagonista do anime, e Julia, figura misteriosa e essencial do passado de um dos protagonistas, entre outros. Fazia sentido. Ao mesmo tempo, a escalação de bons nomes para seu elenco e uma clara reverência à iconografia visual da obra original garantiram não só a boa vontade, mas também a empolgação de muitos que criticavam a ideia.

É por isso que chega a beirar o ofensivo a forma como o texto de Yost e a direção de Alex Garcia Lopez (The Witcher) e Michael Katleman (The Last Ship) buscam cumprir a promessa: revelando na primeira oportunidade todos os mistérios sobre os personagens que, no anime, são gradativamente apresentados ao longo de 26 capítulos. A série da Netflix é tão apressada em sua apresentação de Spike (John Cho), Jet (Mustafa Shakir) e Faye (Daniella Pineda), que é inviável sentir qualquer coisa em relação aos personagens ou seus arcos emocionais, simultaneamente sobrecarregados e subdesenvolvidos. Isso piora na apresentação insegura do universo da série, cheia de diálogos truncados e repletos de exposição. Esses tutoriais são duplamente frustrantes. Primeiro, porque falham em justificar de fato qualquer coisa vista em tela, dos elementos orientalistas empregados por pessoas brancas em suas atividades e ritos, aos hábitos de cada cultura apresentada. Segundo, porque mergulham o público na passividade, subestimando sua inteligência, criatividade e potencial de engajamento.

Trata-se de um claro resultado da falta de confiança que a equipe criativa tem no material que produziu; o que só fica mais evidente na direção de cenas de ação medíocres por Lopes e Katleman. Ao contrário do que acontece no anime — onde esses momentos são tratados como espetáculos visuais responsáveis por aprofundar personagens, relações e acelerar a trama —, o remake as trata como uma obrigação de roteiro, usando uma irreverência rude como forma de maquiar a falta de qualidade técnica do que é visto em tela. Pesa que Cho, Shakir e Pineda não sejam lutadores profissionais, mas o maior problema está no encontro de coreografia, direção e montagem. Todos esses elementos deixam muito a desejar, remetendo em seus piores momentos ao show de horror visto na primeira temporada de Punho de Ferro, outro escorregão da Netflix, e passando longe do primor visual da caprichada animação original.

Se falha nesse aspecto, ao menos o trio de protagonistas brilha quando tem espaço para interagir de forma orgânica entre si, o que reforça a boa escalação dos atores e só prova que certas coisas não podem mudar: toda a caracterização de personagens no roteiro, talvez o único elemento da série que funciona sem ressalvas, ficou a cargo de Hajime Yatate e Keiko Nobumoto. A dupla japonesa de roteiristas, egressa da obra original, luta para preservar ao máximo a identidade do trio — e isso transparece. Só é uma pena que o trabalho desses mestres seja maculado pela inserção tosca de conflitos mal pensados e mal escritos pela equipe americana. Isso sem mencionar a tristeza que é revisitar a genialidade da compositora Yoko Kanno, de volta ao comando da trilha sonora de Cowboy Bebop, em uma produção que não só desrespeita, como fere diretamente a experiência proposta pelo anime.

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Sim, porque ao homenagear a obra original apenas com cuidado na reprodução de elementos supérfluos — a violência, os figurinos, o design de personagens, o design de locações e até o cachorrinho Ein, que acaba totalmente negligenciado pela trama — o remake da Netflix apresenta Cowboy Bebop despido de todo o seu andamento envolvente, sinuoso e sem pressa, bem como sua reflexão existencialista. A série de TV não funciona nem mesmo para atualizar aspectos questionáveis do anime, como o humor sexista (já na primeira cena há uma tentativa de piada envolvendo os seios de uma criminosa), ou a instrumentalização de personagens em prol da jornada dos protagonistas. Vicious (Alex Hassell) ganha mais tempo de tela, mas só para ter esvaziada sua relevância com uma personalidade repleta dos mais tediosos clichês vilanescos. E Julia (Elena Satine) ganha mais agência, mas ao chocante custo de absolutamente tudo que a caracteriza até hoje.

O mais estarrecedor é perceber que a série de Cowboy Bebop leva 10 episódios de ao menos 40 minutos para adaptar livremente só cinco capítulos da animação. Nesse tempo, martela as mesmas informações sobre seus personagens, reitera as engrenagens de seu universo e se apoia constantemente em auto-homenagens vazias e constrangedoras. Ainda assim, oferece uma imersão muito inferior à do original — que tem toda a sua trama revelada em questão de minutos. Para o espectador que não conhece o anime, resta um dramalhão barato que quebra o clima da diversão casual e sequer compensa sua inconstância narrativa com espetáculo visual. Se você escolher embarcar nessa jornada, pode até encontrar alento em boa música e atores carismáticos, mas é mais provável que a experiência será... Um peso a ser carregado.

Nota do Crítico
Ruim