Quando Pose estreou, no dia 3 de Junho de 2018, havia em torno da série uma grande expectativa: ela era uma outra criação de Ryan Murphy em sua jornada pessoal de inclusão, que levaria pela primeira vez para a TV uma série sobre mulheres transexuais feitas por mulheres transsexuais. Não apenas isso. Como previu a fundação HALF, criada pelo showrunner, quase toda a equipe de Pose era formada por mulheres, pretos e minorias. Isso inclui o elenco, roteiristas e diretores. A série chegou ao FX estrelada por um elenco totalmente novo, contando uma história marginalizada e que tocava em feridas ainda latentes.
Para os fãs do universo de Pose o receio era que a série nunca passasse da primeira temporada. Aqueles que assistiram o documentário Paris is Burning (1991) ou mesmo que costumavam assistir aos episódios do reality RuPaul's Drag Race, já conheciam um pouco da história dos “ballrooms”, os salões de baile, que se tornaram icônicos na cena gay de Nova York, mas que sempre estiveram à margem da cultura pop, dependentes de artistas brancos para levá-los aos holofotes, se apropriando deles, como Madonna fez com "Vogue", por exemplo (o que é deliciosamente retratado na segunda temporada). De certa forma, Ryan Murphy, também um homem branco, foi o nome necessário para tirar o projeto dos sonhos de Steven Canals do papel. Todos sabiam que Pose não era uma série para grandes audiências, mas que ela poderia – se bem feita – obter muito prestígio.
Foi o que acabou acontecendo. É muito seguro dizer que cada uma das duas temporadas anteriores foram preparadas para serem as únicas. A renovação para o segundo ano aconteceu tardiamente e embora os roteiros tivessem ensaiado uma renovação de elenco na casa Evangelista, quando a terceira temporada estreou e foi anunciada como a última, Murphy e a equipe voltaram atrás e resolveram explorar, separadamente, cada um dos personagens que já conhecíamos, para que cada um deles tivesse seu arco devidamente encerrado. O FX (braço da Fox) já havia repetido antes seu método de exibição de uma série que está no ar só para “agradar” um funcionário lucrativo: Pose teve dois episódios exibidos de uma vez só na premiere e os últimos dois também exibidos um seguido do outro.
Problema nenhum que a indústria seja condescendente com produções como Pose. De fato, elas só precisam estar no ar, pelo tempo que for possível. As tramas da série nunca se concentraram apenas na rotina dos “excluídos” que compunham a cena dos bailes. A epidemia de HIV entre os anos 80 e 90 se alastrava pela cidade e era impossível não voltar até aqueles anos sem falar do quanto a doença afetou a comunidade. Durante as três temporadas, os personagens estão sempre em velórios, muitas vezes em mais de um no mesmo episódio; além do perigo que ronda os protagonistas. Inseridos de forma inteligente nos roteiros, movimentos como o Act Up tiveram seus protestos retratados na ação (inclusive o que foi mostrado na finale), além de detalhes inacreditáveis de figuras que viveram na época, traduzidas em episódios como o do corpo escondido dentro do armário de Elektra (Dominique Jackson) e o da violenta morte de Candy (Angelica Ross), todos baseados em fatos reais.
Posing for the last time...
Quem conhece o trabalho de Ryan Murphy sabe que por mais terrível ou dramática que seja a história que ele esteja contando, o otimismo é um de seus traços incorrigíveis; e que, por causa disso, às vezes ele escorrega da trilha da verossimilhança contando “o mundo como ele deveria ser”, algo que se repetiu em várias de suas obras, como Glee (2009) e até mesmo na recente Hollywood (2020). Sua obsessão pela ótica otimista das coisas não deixou nem mesmo que Ratched, a personagem “maléfica” de Um Estranho no Ninho (1975), ganhasse um prequel onde prevalece sua história de amor com outra mulher. Essa “escorregada” para fora da linha da “realidade aceitável” pode incomodar muitos e fascinar outros. Com Pose, as decisões foram as mesmas. Mas, felizmente, dosadas com cautela.
Quando o documentário Paris is Burning foi filmado, a cena dos bailes já começava a enfraquecer. O que você vê em Pose está lá, mas a direção do documentário melancolizou absolutamente tudo que foi abordado e as cenas tem um ar entristecido, decadente. De maneira nenhuma que Murphy e Janet Mock (diretora e roteirista de vários episódios) encerrariam a série nesse tom. A ideia era mostrar que aquelas mulheres poderiam vencer naquela época e que outras como elas podem vencer agora mesmo. A solução foi separar os personagens, dar a cada um o reconhecimento das próprias mazelas, fazê-los vivê-las ao extremo e, enfim, lá na frente, começar a redenção.
Graças a essa estratégia, tivemos episódios históricos focados nos protagonistas. É fato que depois de ter vencido prêmios e chamado tanto a atenção da crítica, Pray Tell (Billy Porter) acabou ganhando mais espaço. O episódio solo em que ele visita a família na pequena cidade onde nasceu teve uma das melhores escritas dos últimos anos na TV. Do outro lado, Elektra também mostrou um pouco do próprio passado, permitindo que Dominique Jackson explodisse em cena vivendo uma das personagens mais complexas e irresistíveis da história da televisão. Além disso, Blanca (MJ Rodriguez) completou seu ciclo mantendo firme e seguro o título de figura materna pela qual é impossível não torcer.
Todos os coadjuvantes tiveram um pouco de espaço para crescer. Infelizmente, uma tragédia pessoal na vida do ator Ryan Jamaal Swain o impediu de fazer parte da temporada final e Damon se retirou de cena ainda no episódio 2. Mas, foi perceptível a tentativa dos roteiros de expandir o máximo possível de alcance das histórias, dando voz para os organizadores dos bailes, para membros de outras casas e para a emblemática participação de Sandra Bernhard, como uma das poucas médicas que lutavam pelas comunidades trans e gay na cidade de NY; um personagem que se assemelha muito ao que Julia Roberts viveu na adaptação – também de Murphy – da peça The Normal Heart (2014).
Imaginar Angel (Indya Moore) como uma modelo famosa ou Blanca se tornando uma enfermeira graduada pode parecer um exagero para meados dos anos 90, mas o que Murphy sempre faz em suas histórias é um espelho invertido da realidade. Mulheres trans na TV, na moda, na música, na política, já são uma realidade. A própria Pose deu a algumas dessas atrizes a visibilidade que elas precisavam para continuar exercitando seus talentos. Olhar para as quatro mulheres - com a inclusão de Lulu (Hailie Sahar) nesse grupo – sentadas na mesa de um luxuoso café, zombando da falta de realismo do mundo branco privilegiado de Sex and the City (1998), potencializa esse reflexo. Elas vivem um momento que poderia ser impossível para mulheres trans nos anos 90, falando sobre um outro grupo de mulheres da TV, que agora é que não soam nada realistas. Realmente fascinante.
E tudo a serviço do bom entretenimento. Pose é bem escrita, bem dirigida, sabe equilibrar o drama e o humor, tem um retrato histórico belíssimo e ainda nos afaga com a beleza dos bailes, com a audácia de seus personagens... Para todos que fizeram Pose existiu uma responsabilidade de dar os passos mais largos; e para aqueles que assistiram Pose ficará o dueto entre Pray e Blanca, ao som de Dianna Ross, fazendo chover na passarela, enquanto uma das frases mais importantes do mundo ecoa pelo salão: ain't no mountain high enough (não existe montanha alta o bastante)... que não se possa alcançar. Pose alcançou. Descer de lá, nunca mais.