Ryan Murphy sempre disse em suas entrevistas que é artisticamente atraído por três coisas: párias, horror e otimismo. Em suas produções adultas os personagens de horror e esse otimismo declarado geraram uma receita interessante em várias das temporadas de American Horror Story. Já em Ratched, por exemplo, essa receita desanda, com um nível de impulso otimista tão grande que transforma sua “vilã” em ícone romântico. Quase sempre, o trabalho de Murphy é oferecer aos que estão em volta de sua história uma chance de redenção. Mas, sem perder de vista que o mal, o verdadeiro mal, não é passível de defesa.
No último episódio de Dahmer: Um Canibal Americano, o roteiro começa a falar de perdão. Para quem conhece o portfólio de Murphy, esse não é um movimento inesperado. Contudo, ao passo em que o discurso começa a vazar para as sequências que envolvem Jeffrey Dahmer (Evan Peters), o quadro se fecha de uma maneira estranha, desajustada; o que nos leva imediatamente a uma comparação inevitável: quando explorou a mente de Andrew Cunanan na excelente temporada Versace de American Crime Story, o showrunner conseguiu resultados muito mais eficientes. Andrew foi “explicado” e não “justificado”.
É muito curioso avaliar as temporadas Crime Story em retrospectiva. Na primeira (com OJ Simpson) e na terceira (Impeachment), havia um distanciamento total dos criminosos. Os focos eram as vítimas ou as pessoas que se envolveram nos processos legais. Na segunda temporada – justamente a temporada Versace – ele resolveu que contar a vida de Cunanan de trás para frente seria uma forma ideal de mostrar que ele não era um serial killer e sim um assassino movido pelo ego e pela vaidade. Em todas as três temporadas havia uma grande coisa em comum: eram recortes culturais das épocas em que os eventos ocorreram.
Quando ACS:Versace foi feita, as declarações de Murphy eram pura confirmação. A temporada OJ era sobre racismo, a temporada Versace sobre homofobia e a temporada Impeachment sobre feminismo. Agora em Dahmer, parece que há uma tentativa deformada de reunir os três tópicos num só produto, como se a minissérie fosse uma encomenda imposta pela Netflix, que pagou milhões para que Murphy trouxesse para a plataforma o prestígio que seu trabalho no FX tinha conseguido. Depois de anos sem sair da barra dos resultados medianos, é como se a empresa tivesse desistido; a minissérie chega meio largada ao catálogo, sem marketing, sem muita expectativa.
Jeffrey Dahmer foi um dos serial killers mais perigosos da história dos EUA. Ele já apareceu antes na obra de Murphy, quando o roteirista resolveu reunir vários dessa lista num emblemático episódio da temporada Hotel de American Horror Story. Todas as vezes em que foi retratado na ficção, Dahmer era frio, monocórdio, distante. Evan Peters (cria de Murphy) se esforça muito para demonstrar o mínimo de camadas em uma interpretação que lhe exige minimalismo. Darren Criss, como Cunanan, tinha mais escopo, uma vez que não sendo um serial killer poderia ir da mais absoluta alegria ao ódio, passando por episódios de cinismo, deboche, sedução e alienação. A atuação de Peters é só mais um dos padrões que a série se obriga a seguir; padrões esses que também podemos chamar – sem pejoratividade – de clichês.
Do episódio um ao cinco os roteiros se dedicam ao assassino. Nesse propósito, estão lá todos os itens que fazem parte do clichê: a família complicada, a separação dos pais, a relação paterna determinante, a figura materna dissolvida em transtornos mentais... Nada disso é “culpa” dos planos de Ryan Murphy e sua equipe; essa é a história de Dahmer, que é mesmo parecida com as histórias de outros assassinos como ele; o que nos leva a uma pergunta inevitável: por que recontá-la? Por cinco episódios a iniciativa soa inadequada, justamente porque o criminoso vai para o proscênio, vira a estrela de um enredo onde ele é a criança-vítima de um lar despedaçado.
Quando chegamos ao episódio seis é como se outra minissérie começasse. Essa, sim, aquela que compreende os próprios objetivos. O roteiro do sexto episódio se dedica todo a falar de Tony Hughes, a vítima número 12 de Dahmer, e o faz lindamente. Chega a lembrar o trabalho imensamente sensível de ACS:Versace ao explorar as vidas das duas primeiras vítimas de Cunanan. Daí para frente, até o episódio 10, Dahmer não é mais o centro das atenções e podemos ver Niecy Nash brilhando como a vizinha que passou meses tentando alertar a polícia sem ser ouvida. Até mesmo quando viram a câmera para o pai e a mãe de Jeffrey - nesse ponto da temporada - o resultado emocional é mais efetivo.
A produção é muito competente, a membrana de qualidade visual é sólida, mas o tempo todo a sombra da justificação leviana paira sobre a minissérie. Os cinco episódios que focam nas famílias das vítimas são melhores, mas o problema é que já passamos os cinco primeiros remoendo o comportamento recorrente de um mal que não precisa de amparo psicológico narrativo. Mesmo no ótimo episódio centrado na vítima, lá está o roteiro fazendo o monstro menos monstro através das dores do abandono. E é como se os próprios produtores ignorassem a fragilidade da estratégia, porque o que deveria estar ali para chocar a audiência está, na maioria das vezes, escondido. Grande parte dos atos de violência, dos ataques, do canibalismo, são eclipsados ou deliberadamente omitidos. Em contrapartida, na reta final, os roteiros julgam necessário “poetizar” o desfecho de seu criminoso.
Pode parecer que não, mas é estranho que no último episódio a morte por injeção letal de Wayne Gacy seja entrecortada na edição pelo batismo religioso de Dahmer. Enquanto isso, o roteiro prepara o prisioneiro que vai matá-lo, mostrando-o em sofrimento, sabendo que ele será re-condenado, fazendo com que mais uma vez um afroamericano seja subjugado. A intenção de Murphy é mostrar um personagem negro “se vingando” de um assassino que matou tantos de sua comunidade. Mas, da forma como a série organiza os eventos, fica parecendo que aquela é só mais uma vitória redentora para o serial killer. É quase como se a cena dissesse: “Bem agora que ele estava se arrependendo...”.
No último instante, a produção cobra seu posto de “obra crítica” e as fotos de cada uma das vítimas aparecem na tela, uma por uma (isso logo depois da minissérie já ter espetacularizado um homem que guardava cabeças na geladeira). Considerando que nem todos os mortos são retratados no enredo, o recurso incomoda. A minissérie vale o esforço, mas muito pouco por quem são as vítimas. Infelizmente, elas parecem desonradas.