Todos nós, consumidores assíduos e dedicados de cultura pop e arte, já nos perguntamos sobre o valor de cada uma das adaptações que lidam com nossos títulos favoritos. O que é melhor? O livro ou o filme? Atualmente, a literatura tem servido de material de origem não só para filmes, mas também para séries de TV. Na televisão aberta, também serviu para a criação de minisséries. A pergunta, contudo, permanece a mesma e toda vez que um roteiro é feito com a inspiração de um livro, começam as edições e sacrifícios que provocarão a ira dos mais preciosistas.
Não é o caso das adaptações promovidas pelo diretor Luiz Fernando Carvalho. Não que outros diretores não pensem nas atmosferas de suas adaptações, mas Carvalho tem uma forma especial de privilegiar sensações. Na maioria das adaptações que chegam ao mercado, tudo diz respeito ao que vai entrar ou não do material original. Poucos são os diretores que se dedicam realmente a tentar fazer o espectador se sentir como um leitor. A razão para isso é muito simples, já que a leitura se debruça sobre detalhes e imersões intelectuais que são dificilmente passíveis de tradução imagética.
Colocada em perspectiva, a passagem de Dois Irmãos pela Rede Globo reforça a ideia de que Carvalho continua sendo capaz de “trair” a experiência literária ao flertar com o desafio às suas finalidades. O apuro técnico e o constante reforço dramático fotográfico de sua obra conseguem criar uma identidade visual que quase nos impõe uma resposta emocional. Não é só acompanhar uma história baseada em um livro, mas ficar a mercê de um conjunto de recursos que chega ao ponto de usar uma voz em off para nos informar o que pensa um personagem (um privilégio que, em tese, é natural da literatura). A sensação é que Dois Irmãos se transcreve para a tela com toda a devoção do mundo, mas pecando justamente pelo excesso.
Dois Caminhos
A história narra a trajetória de uma família de imigrantes libaneses que se vê atormentada pela rivalidade entre os gêmeos Omar e Yaqub (Cauã Reymond, na fase final). Essa sinopse é extremamente simples, mas explode na literatura ao se passar a partir dos anos 30, numa Manaus ensolarada e com um monte de períodos históricos que envolvem essa premissa. O amor cego e inflamado da mãe Zana (Eliane Giardini, na fase final) por um dos meninos se configura como o catalisador de uma história de ódio que choca pela intensidade e intriga pela construção fragmentada, cheia de idas e voltas no tempo.
Essa espécie de retomada do projeto de adaptações literárias chamado Quadrante, proporcionou ao diretor firmar uma “trilogia informal” de adaptações que começaram com A Pedra do Reino e com Capitu. Dois Irmãos, contudo, chegou ao ar poucos meses depois da exibição de Velho Chico - novela também dirigida por Carvalho - e que compartilhava alguns signos conceituais e estéticos típicos de seu trabalho: sagas familiares, regionais, rurais, viscerais e solenes. A fotografia quente, sudorífera, que já havia sido usada em Velho Chico (com ênfase na granulação) reapareceu em Dois Irmãos numa versão mais cristalina, provocando um perigoso senso de recorrência. Além disso, as interpretações ultra dramáticas , regadas de muita contemplação, choro e gritos, ganharam na minissérie o suporte de uma trilha sonora grandiloquente.
O quadro geral é afetado, sequenciando cenas intensas uma depois da outra, sem dar muita chance do espectador respirar. A longa história da família passa por muitos pontos de confronto, mas a exagerada valorização imagética de absolutamente qualquer frame, faz com que o roteiro fique devendo alguns apogeus climáticos. O elenco contudo, entende completamente a proposta do diretor e o resultado é uma distribuição invejável de qualidade. Cauã e sua imagem cansada ainda demonstram fôlego e até a inesperada presença de Bárbara Evans no elenco funcionou a favor da produção.
Mais uma vez, entretanto, a decisão de não só adaptar a literatura como também usá-la em sua forma narrativa verbalizada, tornou-se ambígua. A ferramenta da narrativa em terceira pessoa não causa tanto distanciamento no livro, mas em muitos momentos as nuances dos gêmeos são descritas nas narrações da minissérie e as impressões naturais de um espectador que não se guia por uma voz onisciente, se distanciam. A sensação de estar vendo uma ficção mesmo, aumenta. Pode parecer estranho, mas um dos objetivos da teledramaturgia é ser ficção na razão e “verdade” na emoção.
É justamente a naturalidade provida da trivialidade que atrapalha a experiência de Dois Irmãos. Há momentos simplesmente incríveis - como a sequência da morte de Halim (Antônio Fagundes) - que funcionam por todas as razões positivas e negativas desse texto, conferindo ao trabalho de Carvalho uma presença provocativa que de forma alguma pode ser descrita como indiferente ou irrelevante. Sua mão pesada faz televisão para os olhos, mas seu talento em tornar flutuantes as sensações de uma leitura é irrepreensível.
Dramaturgicamente há uma ausência de fluidez notória (presente em várias de suas obras), como se só fosse possível contar boas histórias privilegiando os contornos. É claro que talvez não seja o caso de “amadurecer” o estilo do diretor, mas de aceitar que ele é uma força visual que reafirma personalidade. E personalidade está no topo daquela lista de inevitabilidades: alguns se relacionam com ela e outros não.