Alaqua Cox em Eco (Reprodução)

Séries e TV

Crítica

Atenta aos subtextos, Eco resgata e valoriza temáticas caras ao MCU

Nova série do Marvel Studios entende o apelo da história de super-herói como poucas

10.01.2024, às 13H28.

Olha só a que ponto chegamos nessa distopia de franquias inacabáveis de Hollywood: Eco, a primeira série do selo Marvel Spotlight (criado para produções que não se conectam tão fortemente à narrativa compartilhada dos outros títulos do Marvel Studios), entende melhor o ethos do MCU do que qualquer lançamento do estúdio nos últimos… não sei, cinco anos? Pelo menos desde Ultimato, lá em 2019. De fato, foi ao crepúsculoda Saga do Infinito que Frigga (Rene Russo) nos deu o melhor resumo do que a história conduzida por Kevin Feige tem a dizer: “Todo mundo falha em ser quem deveria ser, Thor. A medida de alguém, de um herói, é quão bem ele se sai na missão de ser quem é”.

O mais bacana de assistir aos cinco episódios que compõem Eco é perceber como eles caminham para uma expansão dessa mensagem de maneira absolutamente natural para a ambientação que a série propõe e para a personagem que escolhe seguir. Nas mãos da showrunner Marion Dayre (Better Call Saul, The Act), o retorno de Maya López (Alaqua Cox) à reserva indígena onde nasceu, fugindo dos capangas do Rei do Crime (Vincent D’Onofrio) após os eventos de Gavião Arqueiro, se torna uma exploração da potência da ancestralidade dentro da cultura nativo-americana (especificamente, a Choctaw), e de como ela alimenta esse conceito de heroísmo como a realização plena de uma identidade.

Igualmente impressionante é entender Eco dentro de uma questão muito específica à Fase 5 do MCU, que emergiu até das produções mais meia-boca da franquia (sim, falamos de Invasão Secreta e Quantumania): o que acontece quando vamos embora? Bom, as feridas das quais fugimos inflamam, ao ponto de parecerem incuráveis. Esse impulso à narrativa da distância e do retorno, dos espaços intransponíveis entre quem foi e quem ficou, reverbera em Eco com a intensidade apropriada para uma história ambientada em uma comunidade na qual pertencimento, por questões históricas associadas a ela, significa também proteção, segurança e poder. 

A ajuda de outra roteirista da equipe da série, Rebecca Roanhorse, vem a calhar nessa expansão toda. Os fãs da Marvel talvez reconheçam o nome da autora de ficção científica, que assinou o arco de quadrinhos A Canção da Fênix: Eco, história mais celebrada da personagem na memória recente e inspiração óbvia para a série. O que Roanhorse faz aqui é retrabalhar sua exploração da linhagem maternal de Maya, esticando-a até a origem mitológica do povo Choctaw, ao mesmo tempo em que reimagina a herança mágica deixada por essas mulheres para a heroína da série - que passa longe do sci-fifolclórico das HQs, mas tampouco se limita ao thriller criminal sombrio vendido pelos trailers.

De fato, Eco é a antítese da separação entre sobrenatural e realista pregada pelos sectos mais insuportáveis do fandom de super-heróis. Assim como os Choctaw vivem no limiar entre a média-América contemporânea e o turbilhão das tradições e crenças místicas de seu passado, a série encontra espaço para o inacreditável dentro de um universo inteiramente crível, sorrateiramente introduzindo a possibilidade da fantasia nos primeiros episódios e preparando terreno para investir nela com tudo no clímax. É um trabalho cuidadoso e eficiente: quando chega a hora de transformar Maya em super-heroína, a série sabe que pode atrelar a catarse da liberação de seus poderes com a sua jornada de (re)integração à comunidade, porque estamos investidos nela.

É verdade que o orçamento limitado à disposição da diretora Sydney Freeland (Deidra e Laney Assaltam um Trem) impede que o confronto final entre Maya e o Rei do Crime ganhe as tintas épicas de outras produções do MCU, mas Eco é um exemplo perfeito para aquele velho e certeiro argumento de que, no fim das contas, a qualidade do CGI ou o tamanho da cena de ação importam muito menos do que aquilo que ela está tentando nos dizer. Freeland acerta ao entrelaçar personagens, os lugares onde eles vivem e as ações que os definem dentro desses lugares, instrumentalizando design de produção (de Melissa Jussufi), figurino (Ambre Wrigley e Stacy Caballero) e fotografia (Kira Kelly e Magdalena Gorka) para criar um ecossistema de significados complexo e envolvente. Em outras palavras: ela dirige, e muito bem.

Essa excelência compenetrada, atentíssima aos subtextos que levanta e como levantá-los, define até os detalhes mais aparentemente inócuos de Eco. A série emoldura o uso da língua de sinais por aqueles ao redor de Maya, por exemplo, como um ponto de contenção para que ela possa entender quem se importa o bastante para buscar formas de se comunicar com ela. Freeland chama sempre a atenção, com a câmera, para os artifícios que são utilizados nessas trocas, atribuindo a eles caráter fluído ou truncado dependendo do tipo de relação que quer estabelecer entre os personagens. E Cox nunca está melhor do que quando busca modular sua expressividade, direcionar seu olhar e limitar sua responsividade de acordo com essas relações comunicativas.

No fim das contas, é meio simbólico que o Marvel Studios tenha sentido a necessidade de distanciar Eco do restante de suas produções, atribuindo a ela um novo selo, uma aura de fenômeno isolado. Sem dúvida foi uma decisão marketeira, mas talvez houvesse ali também, conscientemente ou não, o receio de se atrelar ao trabalho de artistas que fazem com graça e propósito o que o restante do MCU não está conseguindo fazer: transformar o fardo inegável de expectativas, legados e obstáculos narrativos imposto por uma grande franquia em oportunidade para deixar sua marca nela, para preencher uma lacuna que ninguém que veio antes conseguiria preencher, porque ninguém que veio antes é exatamente quem você é.

E qual é mesmo a medida de um herói, Frigga?

Nota do Crítico
Excelente!