Cena da 2ª temporada de Entrevista Com o Vampiro (Reprodução)

Séries e TV

Crítica

Entrevista Com o Vampiro relitiga o abuso, mas advoga mesmo pelo abraço da dor

Série honra raízes terapêuticas da obra de Anne Rice e reposiciona personagens com sabedoria

26.07.2024, às 13H49.

“Sem dor”. O refrão repetido por Santiago (Ben Daniels) logo antes de matar a vítima do dia no ápice da peça apresentada por ele e sua trupe no Théâtre de Vampires, cenário central da segunda temporada de Entrevista Com o Vampiro, fascina o espectador no momento tanto quanto fascina Claudia (Delainey Hayes), que observa tudo com olhos brilhantes na plateia. Parte dessa fascinação está na câmera de Levan Akin (Caminhos Cruzados), que dirige o miolo - e o finale - dessa temporada com um senso teatral agudo e um bom humor insuspeito, mas parte está também na forma com o showrunner Rollin Jones e sua equipe de roteiristas escolhem ofuscar e revelar, episódio a episódio, em um ritmo hipnotizante, o coração envenenado da sua história.

Porque Entrevista Com o Vampiro, veja só, é uma história sobre… dor. Sobre como ela perpassa cada relação, cada história contada e não contada, lembrada e não lembrada, da humanidade. Sobre como seguimos nos escondendo em ilusões e criando laços e desfazendo tradições por causa e apesar da dor, sobre como a dor nos define e nos molda, sobre como escapar dela é a saída dos covardes e abraçá-la é a força impossível dos deuses. E se os vampiros de Anne Rice tinham algo de deuses, não eram os seus poderes sobrenaturais temíveis, mas o fato de que eram obrigados a viver e suportar todo tipo de dor, todo o embaraço desembaraçável de viver nesta terra humana, e não podiam escapar dela. “Sem dor” não é uma opção.

É de conhecimento público que Rice escreveu Entrevista Com o Vampiro, em grande parte, como um ato terapêutico subconsciente para processar a morte de sua filha primogênita, aos seis anos de idade, em 1972. Dessa forma, o seu Louis (Jacob Anderson) e o seu Lestat (Sam Reid), trancados em uma relação sufocante de codependência, de afeto que amarga em luto pela jovem imortal que criaram, Claudia - uma criatura insustentável, presa eternamente em corpo pré-adolescente enquanto sua mente vai envelhecendo, a encarnação do vampirismo como doença -, eram de certa forma um teatro do que a dor é capaz de fazer em uma relação. Eles se amavam e se odiavam, se machucavam e se curavam… mas eles continuavam, porque eram imortais, e Rice ansiava em saber como eles conseguiam.

Nesse pique de esclarecimento, Entrevista Com o Vampiro, a série, transforma a exploração do terreno arrasado que é deixado para trás por essa relação em uma oportunidade de relitigar o que de fato aconteceu nela. Sempre interessada em como nossa memória e nossa subjetividade retorcem e reinterpretam o passado, a produção urge a consideração do relacionamento abusivo como uma história que, como toda história, vem de algum lugar e aponta para outro. Não é uma questão de perdoar isso ou aquilo, suavizar essa ou aquela violência, mas de entender quem eram as pessoas que se chocaram dessa forma tão brutal, quais responsabilidades elas tomam para si, de quais atrocidades elas são culpadas, e o que essas atrocidades significam no contínuo da vida que essas pessoas levam hoje, depois que tudo já passou.

A aventura europeia de Louis e Claudia esbarra primeiro no óbvio, ensaiando em um capítulo inicial competente, mas morno, a história de duas pessoas tentando descobrir quem são após fugirem daquele que definiu isso por elas por tanto tempo. Depois, no entanto, Jones e seus comparsas enterram suas presas em algo muito mais interessante: a história da construção centenária de uma clareza, de uma certeza histórica de si que possa existir mesmo no meio de toda a névoa do constante agora em que vivemos. Como Louis, Jacob Anderson deixa a ternura ingênua e o sotaque charmoso meio de lado para encarnar essa busca em expressões sublimes de fúria, pesar, perdão e justiça. Ele não é mais nosso avatar nesse universo, uma representação do que perderíamos ao entrar nele - ele é quem dá o tom da dor que se desenrola ao seu redor, e nós só precisamos observá-lo.

É na toada dele que o restante do elenco encontra também as entrelinhas que guiam seus personagens: a subserviência instável de Assad Zaman como um Armand patético e perigoso, sinuoso e óbvio; a dureza expectante de Delainey Hayes, que se segura bem diante da missão difícil de substituir Bailey Bass como Claudia; o simulacro dramático de profundidade afetado convincentemente por Ben Daniels como o vaidoso Santiago; as fragilidades penetrantes que Eric Bogosian continua encontrando em seu humano Daniel; as rachaduras que Sam Reid busca e acha no fundo dos olhos do seu Lestat, quando ele faz o seu retorno inevitável para a cena. Eles todos estão aqui em uma missão obstinada de revelar, ou refazer, ou reescrever seus personagens em versões completas, precisas, e acima de tudo reconciliadas (ou tragicamente irreconciliadas) com suas dores.

Porque “sem dor” não é uma opção. Se entregar não é uma opção. Ser nada, ser um símbolo, ser um mártir, ser uma vítima, nada disso é uma opção. Simples demais, fácil demais, chato demais. Agora, ser humano? Bom, parece que finalmente você está me dando uma escolha de verdade.

Nota do Crítico
Excelente!