“A guerra nunca muda.” A citação é emblemática da franquia Fallout nos videogames, refletindo como a mitologia pós-apocalíptica dos jogos entende o ciclo vicioso das relações e da natureza humana, dos conflitos que ela causa, das motivações que a compelem. Esses ciclos, em suas encarnações cotidianas e históricas, eram também a matéria prima de Westworld, uma ficção científica futurista cheia de ideias inteligentes e personagens vibrantes, mas que frequentemente perdia o impulso dado por essas ideias e personagens por confiar demais em laboriosas reviravoltas temporais e desvios narrativos para lá de aborrecidos.
Que interessante, portanto, que os criadores da série da HBO, Lisa Joy e Jonathan Nolan, tenham caído de paraquedas na adaptação para a TV de Fallout, lançada pelo Prime Video. Aqui, eles não são a voz autoral principal da produção, mas “meros” produtores através do seu selo Kilter Films - e a impressão que fica, pelo menos nessa primeira temporada, é que ter um papel colateral no desenvolvimento criativo da série fez bem aos dois. Afinal, eles estão próximos o bastante de Fallout para injetar nela grandes ideias sobre a repetição dos padrões perversos que ditam as vidas humanas e as trajetórias das sociedades, mas afastados o bastante para que ela não se contamine com o inchaço narrativo que condenou Westworld ao seu status eterno de “série com grande potencial”.
Os dois roteiristas que são de fato responsáveis pela condução de Fallout, enquanto isso, tomam todo o cuidado para não embarcar em quaisquer ilusões de grandeza. Cocriadores e co-showrunners, Graham Wagner (Silicon Valley) e Geneva Robertson-Dworet (Capitã Marvel) parecem concordar que a chave para aquele dilema eterno das adaptações de videogame - como agradar os fãs do original sem alienar os neófitos ao universo? - é não subestimar o que a origem da história que estão contando pode fazer em seu favor. Daí que não só a série de Fallout mantém o dedo no pulso do bom humor niilista e meio ridículo da franquia, como também abraça com entusiasmo a estrutura de certa forma episódica de um RPG.
Nossa protagonista é Lucy (Ella Purnell), e ela tem uma grande missão: encontrar seu pai, Hank (Kyle MacLachlan), após ele ser sequestrado do ambiente idílico (e subterrâneo) onde eles viviam e arrastado para o outro lado da paisagem desértica e cheia de perigos dos EUA pós apocalipse nuclear. O seu caminho de A para B, no entanto, é pouquíssimo linear, cravejado de distrações (sidequests, no idioma gamer) que estão ali para impulsionar um arco de personagem que não foge de certo chavão. Ela começa como peixe fora d’água, uma ingénue em um mundo que não tem nada de ingênuo, e negocia com sua moralidade o tempo todo enquanto aprende a sobreviver, lutando para não desrespeitar sua “Regra de Ouro” de reciprocidade mesmo enquanto todo mundo ao seu redor faz isso.
Não só esse é um chavão que cai bem para a temática de Fallout - ela mesma uma história em negociação constante entre cinismo e encanto, entre fascínio e repulsa por tudo que há ou que sobra de humano em seu mundo -, como é um chavão que funciona exatamente porque a série não cai na armadilha de vendê-lo por mais do que é. Exatamente como o coração machucado que se esconde por baixo da carranca deformada e sem nariz do necrótico de Walter Goggins (consistentemente a melhor parte da série, o que não é surpreendente para quem acompanha o ator), ou como o instinto de sobrevivência egocêntrico que emerge da covardia de Maximus (Aaron Moten), sentimos que a experiência adquirida a altos custos por Lucy é genuína por conta da linearidade prazerosa de sua jornada ziguezagueante pelo deserto. Ao invés de nos impressionar, Fallout está preocupada em nos conquistar - e consegue.
E talvez seja isso que Nolan e Joy nunca tenham de fato entendido enquanto faziam Westworld: na ânsia de montar um épico de sci-fi elevado, eles falhavam em seduzir o público para acompanhá-los nessa aspiração. Enquanto isso, uma vez que Fallout conquista a nossa aliança, as ideias mais subversivas que ela esconde por trás daquela máxima simples (“a guerra nunca muda”) ganham espaço para respirar. No retrofuturismo charmoso de sua estética cinquentista, por exemplo, a série monta uma crítica à cultura corporativa que nasceu ou, ao menos, floresceu, naquele momento da história dos EUA. Não só essa cultura promove o egoísmo niilista que culmina no apocalipse e no que vem depois dele, nos diz a série, como também reproduz padrões que existiam muito antes do próprio conceito de corporação.
Empresas privadas são os novos impérios, “administração” é a nova ditadura, “padronização de processos” é a nova colonização. O que queriam os grandes conquistadores, afinal, senão um monopólio do que poderia ser considerado humanidade? E todas as guerras sempre querem acabar com todas as guerras, especialmente porque visam exterminar o diferente, e portanto o atrito que suas diferenças causam quando confrontadas com a ânsia de controle dos poderosos. Dados o poder de fazer isso, tanto chefes de Estado quanto CEOs são capazes de criar um mundo de pesadelo ao tentar realizar os seus sonhos mais profundos.
A guerra nunca muda, porque as pessoas nunca mudam, porque a guerra nunca muda, porque as pessoas nunca mudam… E nada melhor para deixar isso claro, e tornar isso palatável, do que um maldito videogame.