Falou-se na época da estreia de A Colina Escarlate (2015) que Guillermo Del Toro - ou pelo menos o Guillermo Del Toro da fase grife de autor - venera demais o gênero do horror para se permitir aproveitar os prazeres que o horror oferece. A antologia O Gabinete de Curiosidades seria uma oportunidade de mergulhar nesses prazeres sem tanta cobrança, afinal o formato que os episódios assumem, independentes entre si e em média com 60 minutos de duração, empurraria essas narrativas para a experimentação, para o escape e a catarse.
O que vemos, no entanto, é um saldo desigual entre episódios mais seguros de si e episódios protocolares que não sabem aproveitar essa liberdade. A atenção ao desenho de produção e à cenografia é o que une as oito histórias, escritas e dirigidas por nomes distintos sob a supervisão de Del Toro. Não por acaso, esse cuidado com os objetos é o que sempre se espera do cineasta mexicano, e nesse esforço de fidelidade fica assinalada sua veneração ao gênero - o que não se converte automaticamente em uma efetividade narrativa.
O principal exemplo disso é o sétimo episódio, “The Vewing”, de Panos Cosmatos, que pretende beber na fonte do giallo, com suas cores quentes e os sons sintetizados, mas termina num ponto indefinido entre Dario Argento e Jonathan Glazer. Descobrimos que a trama se passa em 1979 porque um personagem diz isso em voz alta, mas de resto essa informação mais se presta ao fetiche da reconstituição de época nos cenários e objetos. Num momento o elenco consome montinhos da suposta melhor cocaína do mundo e isso sequer abala a dormência da narrativa, o que diz muito sobre o esforço desse episódio para se congelar no tempo passado, num registro museológico do horror setentista.
Igualmente hibernantes são os dois episódios inspirados em H.P. Lovecraft - o mais próximo que Del Toro chegou até hoje de filmar sua tão sonhada adaptação de Nas Montanhas da Loucura. Como se vê em O Gabinete de Curiosidades, esse ainda é um desejo distante, porque só o episódio cinco tira algo minimamente vivo do material (seus sustos e seu academicismo quase britânico fazem lembrar os filmes de horror da Hammer, e o duelo Ben Barnes X Crispin Glover tem energia própria), enquanto o episódio seis se limita a mastigar a vitimização do herói e o ressentimento social que envelheceram muito mal na obra do escritor. Continuemos então com a lembrança de Mutação (1997), que até hoje continua sendo a melhor aproximação que Del Toro já esboçou dos monstros informes e das fobias urbanas de Lovecraft.
A melhor forma de compreender a anemia desses episódios citados é compará-los com os três melhores da antologia: “Graveyard Rats”, “The Autopsy” e “The Murmuring”. Os dois primeiros se destacam pela modulação despudorada de registros e por uma entrega mais vigorosa a uma catarse de horror. A modulação na história dos ratos inclui partir da claustrofobia e da inversão de eixos espaciais - que o diretor Vincenzo Natali já exercita desde Cubo (1997) - e abraçar um realismo fantástico delirante que autoriza o prazer de brincar com stop-motion e criaturas animatrônicas. Na história da autópsia, baseada no ótimo conto de Michael Shea, a modulação envolve partir de um mistério forense aparentemente normal para então injetar nesse relato policial clínico e distanciado o elemento fantástico de uma invasão alienígena cientificamente justificada.
Nesses dois casos, a busca por autorizar e justificar o horror e o fantástico a partir de pequenos truques narrativos está à serviço da história e trabalha pelo envolvimento do espectador. É diferente de tentar se aproximar do horror de um ponto de vista solene. De todo modo, a solenidade não tem muito a ajudar histórias de uma hora que precisam passar mais rápido da exposição inicial para a entrega dos sustos. “The Murmuring” é o episódio que melhor consegue desenrolar uma exposição mais tradicional (o velho tropo da mulher sensível demais, lidando com luto numa casa mal assombrada) sem deixar de instilar no espectador um senso de perplexidade com o natural e o sobrenatural.
Del Toro obviamente enxerga os valores muitos discrepantes desses oito episódios, do contrário não colocaria “The Murmuring” para encerrar a antologia em nota alta. A impressão geral que fica, porém, é que o cineasta permanece refém dos seus gostos, e inclusive se vê incentivado a tratar as experimentações de gênero da antologia como uma forma de colecionismo (o gabinete e as estatuetas que ele manipula a cada início de episódio não remetem à toy art por acaso). É obviamente legítimo que Del Toro emule o formato consagrado em Alfred Hitchcock Presents (1955) para se firmar como grife, da mesma forma que o mestre do suspense o fez, mas para efeito de narrativa essa diplomação não tem valor na prática.