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Séries e TV

Crítica

Garotos Detetives Mortos compensa falta de originalidade com solidez

Derivado de Sandman faz releitura de tropos e narrativas tradicionais com inventividade

25.04.2024, às 17H48.

A inventividade de Neil Gaiman ao longo dos sete anos em que Sandman foi publicada pela Vertigo como série regular, aliada à estrutura de antologia dos seus volumes, permite que a HQ seja um grande celeiro de ideias e personagens variados. Dois deles estrelam agora o seu próprio derivado televisivo do universo de Sandman da Netflix, intitulado Garotos Detetives Mortos - uma grata surpresa e um sopro de novidade em meio ao grande déjà vu de adaptações de games, remakes de sagas e versões live-action de animes.

É difícil fugir dessa sensação de repetição quando todas as histórias já parecem ter sido contadas. A própria premissa do derivado inclusive lembra os detetives espirituais que o grande público viu recentemente no live-action de YuYu Hakusho. Acompanhamos Edwin Payne (George Rexstrew) e Charles Rowland (Jayden Revri), dois jovens que faleceram e optaram por não enfrentar os mistérios que os aguardavam na vida após a morte - por consequência, eles passam a ser fugitivos do Perpétuo interpretado por Kirby Howell-Baptiste, a Morte, que reprisa no derivado seu papel da série principal. Edwin e Charles não se limitam a existir no plano terrestre - eles decidem investigar crimes sobrenaturais, tornando-se os tais "Garotos Detetives Mortos".

Edwin, que morreu em 1916, é formal, reservado, reprimido e ordeiro. Charles, que faleceu na década de 1980, é comparativamente um menino indomável e travesso. Embora sejam fantasmas amigáveis ​​​​e caminhem pela Terra, não estão isentos de traumas, dos quais Edwin tem uma medida extra, tendo passado sete décadas no Inferno por causa de um "erro administrativo". Apresentada originalmente no arco “Estação das Brumas”, em Sandman #25, a dupla estrela então essa versão macabra de dois gêneros populares da ficção infantil britânica: a literatura de internato e as histórias de detetives adolescentes.

Há camadas e camadas de tradição e repetição, portanto, nessa encarnação de Garotos Detetives Mortos. Agentes mortais ou imortais que ajudam almas inquietas a completar negócios inacabados e seguir em frente para a luz (ou algo assim) são também um grande tropo da narrativa fantástica, e nisso há ainda mais familiaridade nessa adaptação das criações de Gaiman. O gosto de novidade fica menos pelas mudanças, em relação à HQ, operada pelos produtores Steve Yockey (The Flight Attendant) e Beth Schwartz (Sweet Tooth), do que pelo engajamento em tornar essa gama de referências algo autêntico e particular.

O elenco coadjuvante e a variação de situações e desafios ajudam na empreitada. Em sua jornada, a dupla solitária se junta, por uma coincidência do acaso, à clarividente Crystal (Kassius Nelson) e sua amiga Niko (Yuyu Kitamura), que são capazes de enxergar os meninos-fantasma. É essa equipe improvável que acompanhamos em oito episódios que consistem na solução de diferentes casos - cada um deles envolvendo uma dose de risco e certa ousadia narrativa e alguma quebra de expectativas.

A série apresenta os desafios particulares das aventuras episódicas e, paralelamente, alimenta longos arcos que colocam os protagonistas contra Esther (Jenn Lyon), uma bruxa glamorosa; o Rei Gato (Lukas Gage), que mantém Edwin sob prisão domiciliar mágica em Port Townsend; e a Enfermeira Noturna (Ruth Connell), uma gerente intermediária da vida após a morte (não seria uma narrativa britânica se o reino da Morte não fosse retratado como uma repartição burocrática, governada por “permissões e aprovações”), que trata a presença contínua dos meninos na Terra como uma ofensa ao seu senso de ordem.

Se não há nada inovador aqui, por outro lado tudo é extraordinariamente bem feito, escrito de forma inteligente. Há perturbação, há incômodo, drama e comédia. Ocasionalmente, dá para antecipar uma reviravolta - porque é uma reviravolta que longos anos de familiaridade nos ensinaram a esperar - mas no geral o investimento e a crença de Garotos Detetives Mortos no seu conceito sólido e divertido compensa o leve déjà vu. Sem ser tão ambiciosa quanto Sandman, a série tem agora um desafio tão grande quanto escapar da Morte: chegar ao seu público alvo dentre os lançamentos da Netflix e ainda escapar da sombra do cancelamento.

Nota do Crítico
Ótimo