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Séries e TV

Crítica

Sofia Vergara brilha em Griselda, mas a minissérie soa como uma boa fanfic

História ficcionalizada de Griselda Blanco parece existir unicamente para celebrar sua intérprete

25.01.2024, às 10H00.
Atualizada em 25.01.2024, ÀS 14H15

Quando Griselda Blanco tinha 11 anos, ela supostamente sequestrou um menino de 10 e exigiu da rica família dele um resgate. Os pais do menino não teriam levado a coisa toda a sério e, para se vingar, Griselda teria atirado na cabeça da criança. Um ano depois, ela começou a se prostituir. Conheceu o primeiro marido, teve três filhos; antes do iminente divórcio, foi com ele que aprendeu como funcionavam as redes de tráfico humano que serviriam de base para seu futuro como traficante de cocaína. Griselda teria matado o primeiro marido logo depois que se separaram. Ao lado do segundo, Alberto, que conheceu no mercado dos entorpecentes em Nova York, ela enriqueceu com o tráfico.

Toda essa espantosa epopeia de origem já é passado quando a minissérie Griselda inicia seu primeiro episódio, com a personagem-título, interpretada por Sofia Vergara, pega num momento de vulnerabilidade, entrando em casa ferida depois de um último embate com o marido. Mais tarde, um flashback revela a razão do desentendimento entre eles, e as discrepâncias na ficcionalização aparecem; os registros oficiais do fim da união de Griselda e Alberto falam única e exclusivamente de um motivo: dinheiro. A minissérie, entretanto, já sinaliza outra direção.

Criada pelo mesmo time responsável por Narcos, a minissérie que acompanha a vida de Griselda Blanco se diz “inspirada em fatos reais”. Mas, as escolhas feitas para executar essa adaptação esclarecem muito cedo que aquele é um contexto que não passa mesmo da etapa da inspiração. Doug Miro, Eric Newman, Carlo Bernard e Ingrid Escajeda escolhem renunciar a todo o período em que Griselda crescia como criminosa - talvez inspirados pelos anos de isolamento e fuga de Pablo Escobar que o tornaram notório -, recortam a narrativa e situam a protagonista na sua fuga da Colômbia para Miami, onde ela recomeçaria a construir seu império.

Os acontecimentos que o roteiro deixa para trás ainda compõem a construção da implacabilidade de Griselda. Na versão estabelecida para a minissérie, a Griselda que adentra a própria casa após um ato de vingança imprime uma figura diferente, justificada pela traição, justificada pelo patriarcado, justificado pela misoginia... É claro que essas coisas lutam contra ela, mas, no fim das contas, a minissérie acaba por reforçar que o importante mesmo para ela é esse exercício de justificação.

Só ficou o pó

Depois de mais de uma década vivendo a carismática Gloria, em Modern Family, Sofia Vergara surge irreconhecível na pele da “madrinha da cocaína”. Para além do fato de também ser colombiana, Vergara não é a escolha mais equivalente ao perfil real de Griselda, mas convence como uma mulher que tem a mente tão exuberante quanto o corpo. As próteses que Sofia usa para se tornar a personagem nem de longe ajudam a fazê-la mais parecida com a verdadeira Griselda, mas servem ao distanciamento necessário de seu passado cômico. Realismo, porém, não é uma preocupação dessa ficcionalização; a fisionomia de Vergara é transformada não para ser mais Griselda; mas para ser menos Sofia.

Os seis episódios da minissérie cobrem os anos em que a traficante se instalou em Miami e começou a se envolver na atividade criminosa local. O ritmo da narrativa é ágil, com cenas de ação que colocam Griselda em uma série de situações limítrofes inacreditáveis. A força desses episódios está na realização de que ela é uma mulher cravando posições em meio a um batalhão de homens. Com isso, a minissérie desenha sem enganos seu enquadramento moral e temático, e empurra o espectador a torcer por Griselda mesmo que saibamos que a protagonista não merece torcida nenhuma.

A agilidade dos acontecimentos tem um preço. Os roteiros passam correndo por algumas tramas que enriqueceriam o nosso envolvimento com os personagens, além de continuar a proteger Griselda de um retrato forte o suficiente para que não faça mais sentido tentar justificá-la. O egocentrismo e a paranoia estão ali (sobretudo no ótimo penúltimo episódio), mas toda violência cometida por ela vem depois de uma justificativa. Os roteiristas resistem à ideia de uma assassina puramente cruel, porque acham, é claro, que o alcance dramático de sua estrela precisa de um escopo moral.

Griselda já foi interpretada por Catherine Zeta-Jones em um infame longa-metragem do canal Lifetime, e será interpretada por Jennifer Lopez em um outro longa, que deve ser produzido ainda neste ano. Sofia Vergara – que também produz a minissérie – tem repertório para alcançar a personagem, e o faz com sensibilidade e dedicação. Contudo, os ajustes que justificam Griselda também esvaziam a dramaturgia e a minissérie se torna apenas mais uma sobre criminosos revisitados.

Não é apenas o clichê da cultura colombiana resumida ao narcotráfico que está em jogo aqui, mas também o estereótipo dos revolucionários latino-americanos. O que os criadores parecem querer é transformar uma assassina implacável em uma anti-heroína revolucionária, além de figura digna das mais espetaculares narrativas de ação. O aviso da “história baseada em fatos reais” alerta para a fragilidade criativa que perturba tudo isso. É um nível de reinvenção que descaracteriza o passado, falha na conexão e acaba soando pouco mais que uma boa fanfic.

Nota do Crítico
Bom