Quando Griselda Blanco tinha 11 anos, ela supostamente sequestrou um menino de 10 e exigiu da rica família dele um resgate. Os pais do menino não teriam levado a coisa toda a sério e, para se vingar, Griselda teria atirado na cabeça da criança. Um ano depois, ela começou a se prostituir. Conheceu o primeiro marido, teve três filhos; antes do iminente divórcio, foi com ele que aprendeu como funcionavam as redes de tráfico humano que serviriam de base para seu futuro como traficante de cocaína. Griselda teria matado o primeiro marido logo depois que se separaram. Ao lado do segundo, Alberto, que conheceu no mercado dos entorpecentes em Nova York, ela enriqueceu com o tráfico.
Toda essa espantosa epopeia de origem já é passado quando a minissérie Griselda inicia seu primeiro episódio, com a personagem-título, interpretada por Sofia Vergara, pega num momento de vulnerabilidade, entrando em casa ferida depois de um último embate com o marido. Mais tarde, um flashback revela a razão do desentendimento entre eles, e as discrepâncias na ficcionalização aparecem; os registros oficiais do fim da união de Griselda e Alberto falam única e exclusivamente de um motivo: dinheiro. A minissérie, entretanto, já sinaliza outra direção.
Criada pelo mesmo time responsável por Narcos, a minissérie que acompanha a vida de Griselda Blanco se diz “inspirada em fatos reais”. Mas, as escolhas feitas para executar essa adaptação esclarecem muito cedo que aquele é um contexto que não passa mesmo da etapa da inspiração. Doug Miro, Eric Newman, Carlo Bernard e Ingrid Escajeda escolhem renunciar a todo o período em que Griselda crescia como criminosa - talvez inspirados pelos anos de isolamento e fuga de Pablo Escobar que o tornaram notório -, recortam a narrativa e situam a protagonista na sua fuga da Colômbia para Miami, onde ela recomeçaria a construir seu império.
Os acontecimentos que o roteiro deixa para trás ainda compõem a construção da implacabilidade de Griselda. Na versão estabelecida para a minissérie, a Griselda que adentra a própria casa após um ato de vingança imprime uma figura diferente, justificada pela traição, justificada pelo patriarcado, justificado pela misoginia... É claro que essas coisas lutam contra ela, mas, no fim das contas, a minissérie acaba por reforçar que o importante mesmo para ela é esse exercício de justificação.
Só ficou o pó
Depois de mais de uma década vivendo a carismática Gloria, em Modern Family, Sofia Vergara surge irreconhecível na pele da “madrinha da cocaína”. Para além do fato de também ser colombiana, Vergara não é a escolha mais equivalente ao perfil real de Griselda, mas convence como uma mulher que tem a mente tão exuberante quanto o corpo. As próteses que Sofia usa para se tornar a personagem nem de longe ajudam a fazê-la mais parecida com a verdadeira Griselda, mas servem ao distanciamento necessário de seu passado cômico. Realismo, porém, não é uma preocupação dessa ficcionalização; a fisionomia de Vergara é transformada não para ser mais Griselda; mas para ser menos Sofia.
Os seis episódios da minissérie cobrem os anos em que a traficante se instalou em Miami e começou a se envolver na atividade criminosa local. O ritmo da narrativa é ágil, com cenas de ação que colocam Griselda em uma série de situações limítrofes inacreditáveis. A força desses episódios está na realização de que ela é uma mulher cravando posições em meio a um batalhão de homens. Com isso, a minissérie desenha sem enganos seu enquadramento moral e temático, e empurra o espectador a torcer por Griselda mesmo que saibamos que a protagonista não merece torcida nenhuma.
A agilidade dos acontecimentos tem um preço. Os roteiros passam correndo por algumas tramas que enriqueceriam o nosso envolvimento com os personagens, além de continuar a proteger Griselda de um retrato forte o suficiente para que não faça mais sentido tentar justificá-la. O egocentrismo e a paranoia estão ali (sobretudo no ótimo penúltimo episódio), mas toda violência cometida por ela vem depois de uma justificativa. Os roteiristas resistem à ideia de uma assassina puramente cruel, porque acham, é claro, que o alcance dramático de sua estrela precisa de um escopo moral.
Griselda já foi interpretada por Catherine Zeta-Jones em um infame longa-metragem do canal Lifetime, e será interpretada por Jennifer Lopez em um outro longa, que deve ser produzido ainda neste ano. Sofia Vergara – que também produz a minissérie – tem repertório para alcançar a personagem, e o faz com sensibilidade e dedicação. Contudo, os ajustes que justificam Griselda também esvaziam a dramaturgia e a minissérie se torna apenas mais uma sobre criminosos revisitados.
Não é apenas o clichê da cultura colombiana resumida ao narcotráfico que está em jogo aqui, mas também o estereótipo dos revolucionários latino-americanos. O que os criadores parecem querer é transformar uma assassina implacável em uma anti-heroína revolucionária, além de figura digna das mais espetaculares narrativas de ação. O aviso da “história baseada em fatos reais” alerta para a fragilidade criativa que perturba tudo isso. É um nível de reinvenção que descaracteriza o passado, falha na conexão e acaba soando pouco mais que uma boa fanfic.