Vista desde os tempos de Batman Begins como a casa das produções de super-heróis “sérias”, a DC tem perdido cada vez mais o medo de zombar de si mesma na televisão, de Jovens Titãs em Ação! a Pacificador. Nesse contexto, Harley Quinn surgiu como a mais explícita dessas críticas, atacando sem dó executivos da Warner, conceitos retrógrados propagados por alguns quadrinistas e até a visão míope e imediatista do próprio público. Após a polêmica censura de uma cena de sexo oral na segunda temporada, a animação da Arlequina (Kaley Cuoco) voltou ainda mais ácida e determinada a profanar absolutamente tudo o que os leitores da DC podem considerar sagrado, ao mesmo tempo em que constrói uma história bem feita e emocionante.
Completando a jornada iniciada em 2019, a terceira temporada de Harley Quinn enfim mostra a personagem chegando a uma emancipação definitiva de seu passado vilanesco e aceitando seu novo papel como heroína de Gotham. Ao longo da terceira temporada, Arlequina faz escolhas antes inimagináveis dentro do contexto da animação, desenvolvendo-se mais do que foi capaz de fazer em outras adaptações desde foi criada por Paul Dini e Bruce Timm em 1992. A crise de identidade que aflige praticamente todas as histórias da personagem fora das páginas encontra um ponto final natural, mas não menos surpreendente, deixando portas abertas para aventuras ainda mais criativas na já confirmada quarta temporada.
O mesmo cuidado em aprofundar e resolver os questionamentos da Arlequina pode ser observado em quase todos os personagens coadjuvantes da série. Praticamente co-protagonista de Harley Quinn, Hera Venenosa (Lake Bell) passa por uma jornada parecida, porém paralela à da namorada, tentando encontrar seu próprio lugar em um mundo cuja linha que separa heróis e vilões está mais borrada do que nunca.
Embora mais discretas, as tramas de Cara de Barro (Alan Tudyk) e Tubarão-Rei (Ron Funches) são igualmente profundas, com os capangas/amigos de Arlequina assumindo novos e importantes papéis fora da gangue da palhaça. O metamorfo em especial tem um dos arcos mais interessantes da temporada, que se encerra de forma igualmente hilária e deprimente.
Ao contrário dos dois primeiros anos, a terceira temporada de Harley Quinn não tem um vilão bem definido. Todos os personagens - do Coringa (também dublado por Tudyk) ao Batman (Diedrich Bader) - são guiados por suas inseguranças, que os levam a fazer tão bem quanto mal a Gotham e seus cidadãos. Por mais que esteja cercada de muito humor e bizarrice, essa dualidade torna a série uma das adaptações mais relacionáveis que a DC já lançou e obriga o espectador a rever seus conceitos de heroísmo e vilania - especialmente quando o Príncipe Palhaço embarca em uma bem-intencionada carreira política.
Homenagens e zoeiras
Trazendo praticamente uma piada por segundo às custas do Universo DC, Harley Quinn é, ainda assim, extremamente consciente da importância que os personagens e produções do gênero têm para a cultura pop. Ao longo de seus dez episódios, a temporada presta homenagem a produções que vão da série clássica de Batman e Robin ao sucesso bilionário de Coringa, recriando diálogos e cenas com inteligência e carinho, reconhecendo o esforço daqueles que trabalharam nesses personagens antes da animação.
Mesmo que traga uma versão da Arlequina bem diferente do que aquelas que nos acostumamos a ver desde os anos 1990, a produção da HBO Max reconhece os méritos das outras versões, homenageando-as em vários momentos. Do visual clássico da anti-heroína ao sotaque carregado de Arleen Sorkin emulado por Cuoco, Harley Quinn faz questão de lembrar cada encarnação que a personagem teve antes de se tornar o “quarto pilar da DC”.
Até quando brinca com a masculinidade frágil do Batman (e de alguns fãs) em “Batman Begins Forever”, Harley Quinn o faz como forma de analisar e compreender o Cavaleiro das Trevas para além do mito octogenário construído ao longo de milhares de gibis e horas de adaptações audiovisuais. Em uma das histórias mais tocantes do personagem já produzidas fora das páginas, a animação mostra ao espectador que a morte de Thomas e Martha Wayne tiveram consequências muito mais séries do que apenas o nascimento do Cruzado Encapuzado. Ironicamente, é ao ridicularizar o Batman que a série o transforma em sua versão mais humana até hoje.
Mantendo a qualidade e o bom humor dos anos anteriores, Harley Quinn se supera mais uma vez ao entregar sua temporada mais profunda. Mais do que uma das melhores adaptações de Batman, a animação segue no caminho certo para se estabelecer como uma das melhores produções de super-herói já criadas para a TV.